É constrangedor o silêncio do Planalto e do Itamaraty sobre a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos. A ausência de qualquer declaração põe o presidente Jair Bolsonaro ao lado de líderes populistas, como o esquerdista Andrés Manuel López, do México, e de comandantes de nações que flertam com o autoritarismo, como Vladimir Putin, da Rússia, e Recep Tayyip Erdogan, da Turquia - sem falar daqueles comprovadamente antidemocráticos, como Xi Jinping, da China, e Kim Jong-un, da Coreia do Norte. Nenhum deles ainda reconheceu a vitória do democrata.
Em cenário ainda pior, no caso brasileiro não houve sequer uma declaração do tipo "aguardamos os resultados finais", como fez o governo mexicano, ou "estamos prontos a trabalhar com qualquer líder dos EUA", como afirmou o Kremlin.
Há informações de que o chanceler Ernesto Araújo solicitou no fim de semana a diferentes áreas do Itamaraty informações sobre os impactos de uma administração democrata na política externa brasileira para que possa traçar cenários. Ora, no mínimo o pedido chega com atraso e mostra que o governo brasileiro não só não contava com a vitória de Biden, líder nas pesquisas há vários meses, como não se preparou para um cenário potencialmente adverso.
Chefes de governo dos principais países do mundo já felicitaram Biden, inclusive aliados próximos de Donald Trump, como os primeiros-ministros do Reino Unido, Boris Johnson, e de Israel, Benjamin Netanyahu.
Há um setor ideológico no governo que tem dificuldades em reconhecer, de forma pragmática, as idas e vindas da política e da democracia. Para eles, as relações se dão no nível da amizade, do "tapinha nas costas" e não da razão de Estado, herança do cardeal Richelieu às relações internacionais que coloca os interesses nacionais acima de favores.
Assim como Trump, essa ala do governo entende a derrota como algo pessoal. Mais: como fruto de uma eventual trapaça ou fraude. O personalismo e a megalomania do presidente americano lhes impede de admitir um vencedor que não seja ele.
Nunca se tornou tão urgente e necessário o Brasil exercer a cartilha que orgulha diplomatas de carreira: o pragmatismo da Casa de Rio Branco, que alguns altos funcionários ou pessoas do círculo próximo de Bolsonaro buscaram nos últimos meses não apenas ignorar como sepultar. É conhecida a proximidade do chanceler Araújo, do assessor Filipe Martins e do deputado Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, com Trump e seus estrategistas hoje informais, como Steve Bannon e a alt-right (direita alternativa americana). Antes de se tornar ministro, em 2017, Araújo escreveu um texto que se tornou clássico na escola olavista (versão tupiniquim de Bannon) chamado "Trump e o Ocidente". Ainda que restrito a seu blog pessoal, o conteúdo virou estandarte anti-globalismo e contribuiu para que fosse alçado a ministro. Nele, o presidente americano é endeusado como suposta salvação do Ocidente cristão, branco e heterossexual contra o "marxismo cultural" e o Oriente em uma versão contemporânea (e menos profunda) do choque de civilizações de Samuel Huntignton.
Diante de tamanha admiração, talvez seja difícil, neste momento, descolar da figura do presidente americano. Ou ao menos entender que o jogo mudou.
Qualquer pessoa pode ter suas simpatias ideológicas, mas, uma vez ocupam cargos públicos, devem lembrar que representam a nação, a quem apoia e a quem não apoia suas ideias. É hora de o Brasil começar a pensar as relações de Estado com Estado - e não familiares ou guiadas por gostos pessoais.
O silêncio brasileiro neste momento confirma a sensação de que o alinhamento automático estabelecido pela política externa brasileira desde a posse de Bolsonaro se dá não com os Estados Unidos da América, mas com Donald Trump e seu entorno no poder.