Conheço relativamente bem a região portuária de Beirute, palco da explosão impressionante desta terça-feira (4). Fiquei hospedado ali perto, no Hotel Intercontinental Phoenicia, durante a cobertura da guerra entre Israel e Líbano, em 2006, para os veículos da RBS, e parti daquele porto, seis anos depois, em uma fragata da Marinha do Brasil, que participava da missão de paz das Nações Unidas na costa libanesa.
Embora não seja uma área muito populosa, em razão dos armazéns do porto, a onda de choque provocada pela explosão pode ter provocado muitos feridos - o governo fala em centenas - e há confirmação de pelo menos 30 mortos. O reflexo da explosão atinge também prédios a quarteirões dali. Próximo ao porto, há uma autopista muito movimentada. Daí, as cenas que a gente observa de muitos carros com a latarias destruídas e os vidros despedaçados.
Ali perto, fica o coração de Beirute, a região central, com várias lojas e shoppings, e, a algumas quadras dali, a famosa Mesquita de Mohammed al-Amin. Não distante também fica o local onde foi morto, em fevereiro de 2005, o ex-primeiro-ministro Rafiq Hariri, em um atentado do qual o grupo Hezbollah é o principal acusado.
Beirute, infelizmente, tem um histórico de explosões, todas relacionadas a atentados terroristas e assassinatos políticos. É uma cidade dividida, mesmo 15 anos depois da morte de Hariri, mais de 14 desde o conflito que cobri e três décadas após o fim da guerra civil que durou 15 anos. Por onde se anda, sabe-se se estamos em um bairro xiita, sunita ou cristão. Essa divisão, aliás, já provocou diferentes conflitos e é exatamente esse caldeirão religioso que mantém a tensão presente e a possibilidade de um atentado nesta terça-feira ainda ser cogitada neste momento.
A explosão ocorre a três dias do veredicto do Tribunal Especial do Líbano, com sede em Haia, que deve sentenciar à prisão perpétua, à revelia, quatro homens ligados ao Hezbollah pela morte de Hariri. Esses acusados nunca foram entregues pela guerrilha e continuarão não sendo. Por isso, não faria sentido, em um primeiro momento, um atentado na própria Beirute. A demora de algum grupo em reivindicar o eventual atentado terrorista também desacredita essa hipótese.
Segundo o jornal Haaretz, de Israel, o local da explosão seria um armazém de produtos químicos altamente explosivos, o que sugere um acidente. Israel, até por ter ocupado o país em várias ocasiões e manter sob lupa de drones o terreno, é a nação que melhor conhece o Líbano. Mesmo que a explosão seja em local de armazém, pode ser proposital, o que seria uma ação política, um atentado terrorista.
Em se tratando da capital libanesa, alvo de interesses do Ocidente e de países árabes, a ameaça de ataque é sempre plausível. O Hezbollah exerce um poder paralelo, é apoiado pelo Irã, que vive uma guerra fria regional pela hegemonia do Oriente Médio, com a Arábia Saudita. Mas, mesmo nesse contexto, existiriam outros alvos muito mais midiáticos do ponto de vista político para os radicais xiitas do que o porto de Beirute.
Atentado ou acidente, a explosão desta terça-feira deixará marcas profundas na sociedade libanesa, que já vive em grave crise econômica, a pior em 30 anos, aprofundada pela pandemia, uma turbulência política em razão dos protestos do ano passado, exigindo mudança de governo por políticos técnicos e não vinculados com castas religiosas, e o drama dos refugiados que entram a partir do conflito na Síria. Sem dúvidas, a narrativa da tragédia, mesmo não sendo confirmado atentado, será utilizada por grupos sectários radicais, que costumeiramente manipulam o discurso em prol de seus interesses políticos. São desafios hercúleos mesmo para uma capital acostumada a se reconstruir.