Reis abdicarem do trono em favor dos filhos é relativamente normal na história das monarquias, mesmo em tempos atuais. Agora, deixarem o reino, onde são acusados de corrupção, é algo pouco usual.
É o que está fazendo Juan Carlos, que, nesta segunda-feira (3) comunicou a seu filho, Felipe VI, que abandonará a Espanha. O monarca, que foi chefe de Estado por quatro décadas, é considerado "rei emérito" de todos os espanhóis.
Na carta endereçada ao filho, Juan Carlos explica "sua pensada decisão de transladar-se para fora da Espanha" para contribuir para que o atual rei possa desenvolver suas funções como chefe de Estado, com "tranquilidade e sossego".
Com sucessivos esqueletos no armário, Juan Carlos tem ofuscado o reinado de Felipe VI e atraído a normalmente discreta monarquia espanhola para as manchetes internacionais.
Conheci pessoalmente Juan Carlos em janeiro 2004, no Palácio de Zarzuela, a residência onde morou por mais de meio século e que agora deixará, nos arredores de Madri. À época, recebi de suas mãos o prêmio jornalístico da Casa Real espanhola por uma série de reportagens em ZH.
Juan Carlos, então, representava o espírito de uma Espanha renascida das cinzas da ditadura de Francisco Franco, moderna, de olho no século 21, e inserida em uma Europa que abraçara a socialdemocracia. Ainda que como príncipe tenha se subordinado ao franquismo, tivera tempo e dignidade de iniciar uma aproximação com a oposição política e exilados. Uma vez entronado, conduziu a transição do país para a democracia, hoje consolidada.
A queda do rei começou em 2012, depois de uma viagem a Botsuana, na África, para caçar elefantes. Além da aventura cruel, o monarca, ao lado da então amante Corinna Larsen, esbanjava luxo enquanto, do outro lado do Mediterrâneo, os espanhóis eram confrontados com a crise econômica. O desemprego chegava a 24%. A viagem custou ao monarca uma lesão no quadril e uma chuva de críticas. Mais tarde, ele pediu desculpas aos espanhóis. Mas, com a reputação abalada, acabou abdicando do trono, em 2014, em favor de Felipe.
Em junho deste ano, o Tribunal Superior da Espanha iniciou uma investigação sobre o rei em razão de um contrato de 6,7 ,milhões de euros para construção de uma linha de trens de alta velocidade entre as cidades sauditas de Meca e Medina. Ao mesmo tempo, promotores suíços passaram a investigar várias contas mantidas pelo monarca. Alega-se que Juan Carlos tenha recebido doação de US$ 100 milhões da família real da Arábia Saudita. Parte do valor teria ido parar na conta da ex-amante.
Em resposta à mensagem de autoexílio, Felipe agradeceu e pediu respeito ao legado do pai. Fala-se da possibilidade de Juan Carlos perder o título honorífico e vitalício de rei ou de ele abdicar e deixar de pertencer à Casa Real, o que é pouco provável. Governo e a coroa debatiam a sombra do rei emérito sobre o atual monarca há várias semanas e como seus escândalos produziam uma imagem negativa da monarquia justamente no momento em que a Espanha começa a se recuperar de um dos momentos mais trágicos de sua história moderna, a pandemia de coronavírus. A verdade é que Juan Carlos se tornou um pai problema para Felipe.