A morte do negro George Floyd por um policial branco escancarou o racha racial na sociedade americana, deflagrando manifestações em vários Estados contra a segregação, a violência policial e os discursos de ódio. Mas não foi um caso isolado.
De tempos em tempos, mortes de afro-americanos ocorrem em diferentes Estados dos Estados Unidos e, mesmo o governo do primeiro presidente negro da história americana, Barack Obama, não conseguiu implementar medidas que aplacassem o problema.
- Nos Estados Unidos, o racismo é muito forte inclusive dentro do sistema legal - pontua o diretor do Departamento de Direitos Humanos e Promoção da Cidadania da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), o juiz Daniel Neves Pereira, que defendeu dissertação de mestrado na Robert H. McKinney School of Law, da Universidade de Indiana, sobre o sistema carcerário, violações ambientais e de direitos humanos.
Na próxima terça-feira (15), o racismo sistêmico nos EUA sob a ótica da Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial será tema do webinário Black Lives Matter, organizado pelo Comitê de Direitos Humanos da International bar Association, com apoio da Sociedade Americana de Direito Internacional. O evento virtual é aberto ao público e será em inglês (veja como se inscrever aqui). Pereira concedeu a seguinte entrevista à coluna.
De tempos em tempos, há episódios de violência policial contra negros nos Estados Unidos, o mais recente envolvendo a morte de George Floyd, em Minneapolis. Por que os americanos não conseguem resolver o racismo sistêmico?
Há diferença entre o racismo americano e o brasileiro. Nos Estados Unidos, é muito mais visível na sociedade, as pessoas demonstram mais claramente uma posição racista, diferente do que temos no Brasil, como regra: nossa sociedade tem diferenças, há o racismo histórico, tanto que a gente precisa recorrer a sistemas como de cotas, mas é algo mais velado. Nos EUA, há claramente pessoas que acreditam que a raça é algo importante e que os brancos têm alguma diferença com relação aos demais. As raças são diferentes, e elas se organizam de maneira muito específicas em guetos, em bairros. Essas pessoas atuam em locais diferentes da sociedade, exercem posições diferentes. Nos EUA, o racismo é muito forte, inclusive dentro do sistema legal. Primeiro, há o grande movimento da escravidão, com a diferença que lá, depois que houve a liberação dos escravos, ainda houve as leis de Jim Crow, que legalizavam a segregação racial, que diziam que poderia haver escolas diferentes para negros e para brancos. E isso começou a cair na década de 1950 e definitivamente em 1964, com as leis dos direitos civis. Há uma geração nos EUA que conviveu com a segregação legalizada, e esse povo ainda está lá. São pessoas mais antigas, que viveram isso. Elas de certa forma consideram muito mais normal (os atos racistas) do que nós. No Brasil, tivemos a escravidão, a abolição e, depois, não houve legalmente nada fazendo uma segregação racial. O povo é mais misturado, mestiço. Nos EUA, até os anos 1960, ainda havia uma segregação institucionalizada que se reflete no comportamento das pessoas.
Nos EUA, o racismo está mais arraigado na sociedade?
É mais arraigado, mais evidente, mas, ao mesmo tempo, não quer dizer que seja mais cruel. Porque, em nossa sociedade, o racismo é mais velado. As coisas estão muito escondidas, é difícil simplesmente falar que tu és racista. Lá, os comportamentos racistas são mais abertos.
No Brasil, tivemos a escravidão, a abolição e, depois, não houve legalmente nada fazendo uma segregação racial. O povo é mais misturado, mestiço. Nos EUA, até os anos 1960, ainda havia uma segregação institucionalizada que se reflete no comportamento das pessoas.
Como se combate o racismo, na sua opinião?
São problemas que se resolvem em gerações. Não há como, de um dia para o outro, se resolver uma questão tão complexa como essa. Momentos como a morte de George Floyd, essas mobilizações, fazem com que a gente repense. É importante que surja, de quando em quando, para que a gente repense e, de alguma maneira, exerça algum tipo de avanço legislativo e social. No caso de George Floyd, não só os negros saíram às ruas para protestar. Via-se brancos indignados com a situação também. Movimentos que eram restritos às minorias, para tentarem se auto protegerem, já estão atingindo uma nova geração, que está indignada e que percebe que isso está errado. Mas é algo que a gente precisa ainda de algum tempo, algumas gerações, para que seja resolvido. Mas esses momentos históricos são importantíssimos, serão lembrados no futuro como de grandes viradas.
Como as marchas de Selma a Montgomery, nos anos 1960?
A gente tem de passar por isso, mas é necessário ter uma certa paciência porque é algo que exige investimento, mudança, vontade política de várias gerações.
Havia toda uma expectativa com relação a mudanças nas políticas raciais durante o governo de Barack Obama. Mas o fato de ser o primeiro presidente negro da história americana não ter sido determinante para reduzir o problema do racismo.
Não foi. Na verdade, até uma das palestrantes convidadas, a Michelle Alexander (escritora americana, advogada especializada em direitos civis e uma das participantes do webinário), coloca que, em sendo estrutural, o racismo permite inclusive que se conviva com negros de grande sucesso, e isso às vezes até atrapalha a própria evolução. Serve como uma justificativa para dizer: "Olha, nossa sociedade não é racista porque temos um presidente negro", "Nossa sociedade não é racista porque temos um jogador de futebol americano negro que ganha milhões de dólares". Esses expoentes fazem parte de todo um sistema que pode até justificar o racismo estrutural. Isso é perverso. A eleição de Obama vem nesse contexto: o racismo institucionalizado permite isso. Não faz florescer. Temos de pensar a sociedade como milhões de pessoas fazendo parte de um sistema, que se tu colocares em números, daí sim tu vês o racismo institucionalizado. Eu fiz uma pesquisa sobre as condições nos presídios americanos, e até conectei com o caso do Presídio Central.
O que o senhor descobriu na pesquisa?
O encarceramento da população branca nos EUA é de 330 para cada 100 mil, enquanto latinos são 900 a cada 100 mil, e de negros, 2 mil a cada 100 mil. É quase 10 vezes mais do que os brancos, proporcionalmente. Michelle Alexander sustenta que a nossa forma de encarceramento em massa e o nosso sistema penal como um todo é a terceira onda de segregação racial. No Brasil, passamos por duas grandes, a escravidão e o encarceramento em massa. Nos EUA, houve a escravidão no início da formação do Estado americano, depois teve as leis Jim Crow, que permitiam a segregação racial, como ônibus, escolas e banheiros separados, e a terceira seria essa do sistema criminal, que está desenvolvido de tal maneira que acaba atingido muito mais negros e outras populações vulneráveis do que os brancos. Michelle sustenta algo controverso: que esse sistema criminal está desenvolvido muito mais como forma de segregação racial do que como um sistema de justiça. É algo que a gente vai ter de discutir nos próximos cem anos, mas é uma semente que é importante plantar.
E com relação ao governo Donald Trump, eleito muito em cima do discurso branco, hétero: o racismo piorou durante seu mandato?
É papel de um governante lutar contra o racismo e contra todas as formas de discriminação. Surgiram no mundo, na última década, governos que não lutam contra o racismo. Essa deve ser uma luta constante, e o governo Trump não está muito preocupado com essa luta. Como Estado, EUA, Brasil e outros países assinam tratados internacionais de defesa dos direitos humanos e contra discriminações raciais, tortura. O papel do governo é tentar fazer com que essas convenções internacionais sejam transformadas em atos concretos dentro de seus próprios países. Alguns fazem com mais ênfase, e outros com menos. Me parece que, nesses últimos anos, governos como Trump e outros mais de direta na Europa não estão fazendo isso. O governo brasileiro pode ser que não esteja atuando devidamente contra isso. Mas é um movimento pendular: a história vai fazer com que esses governos deem sua colaboração e futuros governos vejam o que foi certo e errado nisso e tentem dar sua nova cara. Essa é a democracia.
Depois do caso George Floyd, se falou muito em reforma policial nos EUA, inclusive acabando com corporações policiais. O que está sendo discutido nessa área?
A brutalidade policial como um todo tem também um fator racial, porque faz parte desse sistema de justiça que está inserido nesse racismo institucionalizado e estrutural. Nos EUA, é mais grave e mais claro. No Brasil, se imiscui com a situação social de pobreza e vulnerabilidade. A ação policial, quando tomada dentro de ambientes mais vulneráveis, é mais brutal do que quando em ambiente de menos vulnerabilidade. Temos de utilizar momentos como esse de George Floyd e outros casos emblemáticos para discutir (o problema) sempre, continuamente. Não é algo que vai mudar hoje ou amanhã, mas que a gente não pode esquecer. A democracia é uma luta constante, e esses avanços sociais só virão a partir dessas lutas. Não vamos melhorar de um dia para o outro, nem para sempre. A gente tem de estar sempre melhorando. Essa é a grande questão.