Há poucas certezas neste momento de vulnerabilidade global, em que o mais importante é “baixar a curva”, conter o coronavírus e reduzir as mortes pelo planeta. Mas há algo certo: quando tudo passar, a política global e a relação entre os países não serão iguais a novembro de 2019. Não estaremos, como humanidade, no mesmo lugar.
Ao mesmo tempo em que a covid-19 chegou em um momento em que a ciência, a tecnologia e as comunicações atingem nosso status de maior evolução - o que nos dá algum otimismo na comparação a 1918, quando a chamada gripe espanhola dizimou entre 3% e 5% da população mundial -, nos pega de calças curtas no quesito cooperação.
Até novembro de 2019, quando o vírus surgiu em Wuhan, os olhares do mundo estavam voltados para a guerra comercial entre China e Estados Unidos, chamávamos o Brexit de abismo, o impeachment fazia cócegas a Donald Trump, os levantes nos países latino-americanos faziam balançar governos, as guerras na Síria e no Iêmen matavam milhares, o sobe-e-desce do petróleo e do dólar estremeciam a economia global, a influência russa no Oriente Médio crescia, a retirada americana do Afeganistão dava esperanças desconfiadas de paz. Nos questionávamos se Trump irá ou não permanecer na Casa Branca depois de novembro - hoje, há dúvidas até se haverá eleição. O Chile, por exemplo, cancelou o referendo sobre a nova Constituição, previsto para abril.
É claro que isso tudo não parou com o coronavírus. As questões globais não estão dissociadas do local, da doença que nos aflige e a nossos familiares, amigos, vizinhos e comunidade.Mais do que isso, o coronavírus se interconecta com a realidade da política internacional.
A resposta dos governos obedece à lógica que já existia: tensão entre adversários (EUA x China e Europa), isolacionismos, propaganda ofensiva, guerra de versões, a suposta culpa chinesa que o deputado Eduardo Bolsonaro fez questão de reverberar, o verdadeiro abismo entre Ocidente e Oriente teorizado nas teses de Samuel Huntington.
A ditadura chinesa, a seu modo, depois de esconder, como de hábito, informações, brecou o contágio local nas últimas 48 horas. Japão e Cingapura evitaram alta taxa de crescimento da epidemia isolando casos e evitando contatos. Os coreanos tiveram sucesso com medidas de distanciamento social e ampla testagem de casos suspeitos. A Itália paga o preço de de ter sido a porta de entrada do vírus em um Ocidente descrente em seu potencial devastador: caminhões do exército transportando corpos, despedidas abreviadas e, hoje, número maior de mortos do que a própria China. França, Alemanha e Espanha bateram cabeça. O Reino Unido e os Estados Unidos dos seus negacionismos - e o Brasil à reboque - demoraram para reagir e ainda não se sabe o resultado do retardo das ações.
Mas o que virá, além de nova recessão? Governos que responderem mal à crise serão punidos pelos eleitores. Não à toa, Trump busca, ao culpar a China pela origem do vírus e a União Europeia (UE) por leniência, mirar o inimigo comum. Nada fora do script trumpiano, mas que contradiz o lugar de liderança americana diante dos desafios globais. Tirar o corpo fora contradiz a tradição de George Washington, Abraham Lincoln, Franklin Delano Roosevelt. É o nosso espírito do tempo, o nosso Zeitgeist. O nosso modo de vida capitalista, as idas aos restaurantes, os vinhos, as mesas ao ar livre na Europa e aqui, o nosso contrato social está sob ameaça. Nada é irreversível. Nada é para sempre.
Por décadas, desde o século 20, acreditamos que o melhor do mundo seria fronteiras abertas. Essa é a base da UnIão Europeia (UE), acordada no chamado Schengen. Mas isso tudo caiu por terra em duas semanas: a abertura de fronteiras foi suspensa, e a Europa volta a manter a desconfiança sobre os vizinhos.
Talvez só uma pandemia seja capaz de nos fazer refletir sobre a vulnerabilidade de nosso sistema mundo. Uma fábrica que polui na China afeta o nosso ar. Uma crise na Venezuela nos faz nos encontramos, como comunidade global, no nosso dia a dia, migrantes na Rua da Praia. Uma epidemia que começa na China chega mais rápido aqui: comunicação, transporte, migração. Assuntos globais - um vírus que surgiu Wuhan, que poucos de nós conseguem localizar no mapa, pode atingir nossas vidas.
A partir dessa semana, quase 200 milhões de pessoas estarão em quarentena. Nossa visão cartesiana de separar local, nacional e global foi por água baixo. O local é global. O global é local.
No momento em que líderes brincam ao desdenhar a ciência, é hora de confiar naquilo que nos trouxe até aqui. Os aplausos nas janelas aos profissionais de saúde nos lembram que somos feitos de carne, osso e emoção. A histórias das relações internacionais é bastante simples: de isolacionismo (o realismo propõe o cada um por si) ou de cooperação, que tem em Woodrow Wilson seu maior sonhador. É hora de repensarmos prioridades. Não há êxodo, ao contrário de guerras que vimos no século 20. Não há para onde fugir. O momento é de exílio. E isso precisa servir para alguma evolução.