Países divididos política e socialmente enfrentam, de forma mais fragilizada, um desafio brutal como a pandemia do coronavírus. Estou falando da Índia, que colocou desde esta terça-feira (24) 1,3 bilhão de pessoas em isolamento como forma de conter a doença. Trata-se do segundo país mais populoso do mundo confinado. Costuma-se classificar a Índia como a maior democracia do planeta em quarentena porque, no caso chinês, as restrições de circulação se limitaram a Hubei, a província onde fica Wuhan, nascedouro do vírus, e porque, obviamente, o regime chinês é autoritário.
Falo de divisões sociais e políticas porque, há meses, a Índia do primeiro-ministro Narendra Modi vive uma crie doméstica que só apareceu nas manchetes ocidentais quando o presidente Donald Trump esteve lá, em fevereiro deste ano. O governo, com viés nacionalista hindu e populista nos padrões, colocou o país em pé de guerra aos propor a chamada Lei da Cidadania, que segrega os cidadãos pela religião e etnia.
A nova legislação aprovada pelo parlamento garante nacionalidade indiana a budistas, cristãos hindus, parsis, jains e sikhs que escaparam de três países por causa de perseguição religiosa antes de 2015. Mas excluiu muçulmanos (em especial os rohingyas de Mianmar, que viveram um êxodo recente). Os seguidores da religião de Maomé são minoria na Índia, mas, dados os números mastodônticos do país, representam um contingente maior do que muita nação islâmica: são 200 milhões de muçulmanos em território indiano.
A lei atual vale por 21 dias. É uma forma de as autoridades conterem os casos de coronavírus que, no país, são 494 - com 10 mortes - até agora. Muito provavelmente há subnotificação, e as estatísticas devem ser muito maiores. A Índia tem grandes aglomerados urbanos, como Nova Délhi e Calcutá. Cerca de 1,7 milhão de pessoas vivem em situação de rua.
Se todos os indianos se trancarem em casa, segundo cálculo da AFP, o país em quarentena forçada eleva o número global de pessoas sob resguardo domiciliar a 2,6 bi de pessoas.
Do ponto de vista geopolítico, significa o primeiro país do sul do mundo, desigual, cheio de favelas a viver drasticamente os tempos de coronavírus. A Índia, embora vizinha da China, país onde se originou o vírus, até agora mantinha certa demora em radicalizar as decisões, em sintonia com o governo dos Estados Unidos.
Modi, que recebeu o presidente Jair Bolsonaro em janeiro, é alinhado estratégico do governo Donald Trump. O americano o recebeu com festa, em uma arena de Houston, em setembro, festa incomum retribuída pelo indiano em fevereiro em Ahmedabab, no maios estádio de críquete do mundo. Nem nos EUA Trump foi tão aplaudido quanto lá.
A Índia tem peso político importante para os americanos, servindo de freio e contrabalanço à China na região. O país também é uma das poucas grandes nações do mundo em que o índice de aprovação pessoal de Trump está acima de 50%. O país estreitou laços com os EUA nos últimos anos diante do crescimento da influência chinesa na região e após o relacionamento entre a Casa Branca e o Paquistão - inimigo indiano - ter se deteriorado.