A insurreição na Bolívia, que resultou na queda do bolivariano Evo Morales, é a prova perfeita do poder paralelo que as forças armadas exercem nas entranhas da América Latina. Ainda que tenha pesado para a renúncia o relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre irregularidades na eleição, foi a voz do general Williams Kaliman, comandante das forças armadas bolivianas, a pá de cal no governo do líder cocaleiro. A "sugestão" para que saísse foi acompanhada pelo comandante-geral da polícia boliviana, general Vladimir Yuri Calderón.
Não fizesse, Evo acabaria preso ou morto. Horas antes de ir à TV, o presidente já estava acuado pelo motim de policiais em quatro unidades estratégicas, que declararam apoio aos manifestantes e recusaram-se a reprimi-los. Quando as forças armadas deixaram de intervir na rebelião, o destino de Evo estava selado.
Herança das ditaduras que vigoraram no continente sul-americano entre anos 1960 e 1990, o poder dos militares na América andina se faz presente não apenas nas crises na Bolívia e na Venezuela, mas também em rebeliões recentes em Equador e Peru. Mais ao Sul, no Paraguai, até os anos 2000, qualquer descontentamento na caserna era visto como risco de golpe — o ex-general Lino César Oviedo pairava como ameaça até ser preso no Brasil. Recentemente, no Chile, o presidente Sebastián Piñera tremeu quando o general Javier Iturriaga, responsável pela implementação do estado de emergência, rebateu a ordem do presidente, dizendo que "não estava em guerra com ninguém".
Há uma diferença fundamental entre a Venezuela de Nicolás Maduro e a Bolívia do agora ex-presidente Evo. Enquanto o primeiro mantém-se na cadeira presidencial graças ao apoio das forças armadas, o segundo nunca teve os quartéis nas mãos em seus 13 anos no poder. Com tradição conservadora, os militares bolivianos não morriam de amores por Evo, líder de esquerda, oriundo dos plantadores de coca do Chapare que se consagrou presidente em 2005 após anos comandando interrupção de estradas pelos movimentos sociais. A situação é bem diferente da Venezuela, onde Hugo Chávez, tenente-coronel paraquedista, era visto pelos militares como um deles. Maduro herdou esse aparato estatal no qual as forças armadas penetram em praticamente todos os organismos de governo.
Rescaldo do autoritarismo latente, nem um folha se mexe em alguns países do continente sem que os quartéis saibam — e, por vezes, atuem.