O mais novo front do terrorismo internacional está localizado em um país de língua portuguesa. No recente boletim Al-Naba, espécie de newsletter produzida pelo grupo Estado Islâmico, os extremistas anunciaram sua presença no nordeste de Moçambique, na fronteira com a Tanzânia. Conflitos na região, província de Cabo Delgado, são frequentes, mas até agora não havia indícios da presença da organização de Abu Bakr al-Baghdadi, morto no fim de semana na Síria.
Há anos existe a presença de grupos radicais islâmicos na região. Um deles se autodenomina Ansar al-Sunna - Defensores da Tradição, que também foi a designação adotada por um grupo sunita que lutou contra as tropas americanas no Iraque entre 2003 e 2007. Na África, a organização seria composta por moçambicanos dos distritos de Mocímboa da Praia, Palma e Macomia, e estrangeiros de Somália e Tanzânia – este último, alvo de um atentado reivindicado pela rede Al-Qaeda contra a embaixada americana, em 1998, na capital Dar es Salaam.
Chama a atenção, agora, o fato de o próprio EI, autodenominando-se integrantes do "Califado da África Central", reivindicar presença no território. Desde outubro de 2017, pelo menos 250 pessoas morreram nos confrontos. Em maio, uma ação dos guerrilheiros chamou a atenção pela crueldade e modus operandi semelhante ao do EI: 10 corpos decapitados foram encontrados em um vilarejo chamado Monjane. A intenção do EI seria de estabelecer um califado em Moçambique. Os alvos geralmente são vilarejos remotas. Os ataques são realizados com machados, mas há relatos de tiroteios e do uso de um dispositivo explosivo básico.
A região nordeste do país virou palco recente do interesse de empresas, que estão desenvolvendo uma das maiores jazidas de gás descobertas na última década. Moçambique é um país de maioria católica (56%) com uma importante comunidade muçulmana (18%). Mas no norte do país os muçulmanos são maioria. O radicalismo islâmico não tinha raízes em Moçambique, mas, nos últimos anos, líderes muçulmanos de Cabo Delgado alertaram para a chegada de radicais, seguidores do extremista queniano Aboud Rogo Mohammed, morto em 2012.
"É uma tentativa de criar desordem", diz moçambicano sobre ataques no no país
Direto de Lichinga, no norte de Moçambique, Eurico Rassude, funcionário da autoridade tributária do governo, conversou com a coluna sobre a situação em seu país. Ele afirma que não há evidências da presença do grupo Estado Islâmico, mas acredita que a região, por ser rica em minérios, pode estar sendo foco de desestabilização por interesses externos. Rasssude é doutorando do projeto de pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS no país. Veja trechos da conversa.
O Estado Islâmico está reivindicando presença em Moçambique. O que as pessoas falam sobre essa ameaça no país?
Não me parece uma mensagem muito verídica. Visito a fronteira Tanzânia-Moçambique frequentemente por causa de meu trabalho. Não há evidências do Estado Islâmico nessa zona. Em termos de religião, essa região é dominada majoritariamente pelo Islã, embora tenha-se uma forte presença cristã. Do lado da Tanzânia, a maior parte da população também professa o islamismo. Temos forte relação com a Tanzânia, histórica. A meu ver, nem hoje nem amanhã haveria espaço para estragar tão linda relação, que começou em 1960.
Quem estaria por trás desses ataques, decapitações, então?
Não associaria isso ao EI. Moçambique é um Estado laico, de muita abertura, acolhe a maior parte dos grupos religiosos. Há uma abertura muito grande, de tal maneira que não haveria espaço para alguém reivindicar a maneira como o governo atua. Há uma abertura do ponto de vista religioso. É um dos países da África com várias religiões, embora as fés islâmica e cristã sejam dominantes. Até agora ainda não tínhamos registros de conflitos de origem religiosa. Pra mim, é difícil associar esses ataques que estão acontecendo à religião islâmica. Seria absurdo. Provavelmente, esses grupos possam utilizar a história dos outros países, podem estar usando a forma de se vestir dos islâmicos, porque sabem que, do ponto de vista internacional, muitos dos terroristas têm um determinado comportamento. Seria provavelmente uma tentativa de manchar a religião islâmica.
Existe a possibilidade do que chamamos de tentativa de intromissão externa devido ao fato de a região ser um poço de recursos naturais
EURICO RASSUDE
Mas qual seria o interesse?
Há hipótese de descontentamento político. E, por conta disso, pode existir algum movimento que procura ajuda externa e intervenção externa.
Ajuda externa com dinheiro ou envio de tropas?
O país é muito estável, embora em um ou outro ponto surjam movimentos que tentam desestabilizá-lo. Historicamente, temos registros de movimentos nacionais apoiados por forças externas para tentar destruir a força que está poder. Provavelmente, esteja acontecendo isso. Desde a independência até as recentes eleições, o governo sempre esteve nas mãos de um único partido (Frente de Libertação de Moçambique, Frelimo). Pode ser que um ou outro grupo não esteja satisfeito com essa realidade e, uma vez que não tenha apoio interno, provavelmente esteja recorrendo a apoio externo para lutar contra o regime. Como estudo economia política internacional, associo também a outra hipótese: a região que está sendo vítima dos ataques é muito rica em recursos naturais, desde gás natural. É uma zona de diamante, de ouro, de tudo. Em uma região com essas características, há muitos interesses nacionais e internacionais. Os focos de ataques nesse momento provavelmente estão ligados a uma tentativa de criar desordem para exploração ilegal de recursos. A história já mostrou que zonas ricas em recursos naturais foram problemáticas e grandes potências estão lá metidas para explorar commodities e todo tipo de insumos para alimentar suas indústrias. Podemos levantar como hipótese a tentativa de interferência externa motivada por grupos internos para criar um ambiente de desordem e, por meio disso, ter facilidade para exploração sem controle dos recursos. Do ponto de vista da segurança, Moçambique, junto da região da SADC (Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral), da qual a Tanzânia também faz parte, está muito preocupado e trabalhando para identificar quem são esses grupos, o que querem de verdade. Até agora não esclarecem seus objetivos. Acredito que a dificuldade de identificá-los pode estar associada à mão invisível externa, que manipula grupos nacionais e, para mascarar a realidade, pode estar utilizando essa capa de grupo islâmico. Mas, na verdade, em Moçambique nunca tivemos conflitos de ordem religiosa. A convivência é muito salutar nesse sentido.
Quando o senhor fala de um ator externo, seriam os EUA? Historicamente, a Rússia tem boa relação com o governo de Moçambique.
Não há evidências. Mesmo a Rússia, a amizade entre países é aparente. Busco um pouco dos princípios dos realistas (teoria das Relações Internacionais segundo a qual os Estados são atores unitários e racionais, circundados por uma estrutura de permanente conflito e um sistema anárquico) quando olho os atores internacionais. Existe amizade, cooperação, mas, no fundo, os países desconfiam uns dos outros. Em última instância, o que vai prevalecer é os interesses dos Estados. Podemos ver alguns países que podem parecer meigos amigos, mas por trás da meiguice pode haver outros objetivos. Não posso afirmar que é a Rússia ou os EUA porque ainda precisamos de dados para sustentar essa ideia. Mas existe a possibilidade do que chamamos de tentativa de intromissão externa devido ao fato de a região ser um poço de recursos naturais, com maior destaque para o gás natural.