— Me deitaram na cama, e Brett subiu em cima de mim. Eu gritei.
Assim Christine Blasey Ford, com a voz embargada, começou seu relato de horror na sala da Comissão do Judiciário do Senado na tarde em que os Estados Unidos abriram as portas de seus armários para os esqueletos de sua chaga social chamada cultura do estupro nas universidades.
Foi na quinta-feira passada, mas as frases nos jogaram para 36 anos atrás. Era verão em uma casa de Chevy Chase, arredores da capital americana. No meio da festa, Chris subiu ao segundo andar da residência para ir ao banheiro. Dois rapazes bêbados, um deles Brett, a jogaram em um quarto. Para abafar seus gritos, ele cobriu sua boca com a mão, enquanto tentava tirar sua roupa com a outra.
— Mal podia respirar e temia que Brett me matasse acidentalmente — contou.
Brett é hoje Brett Kavanaugh, juiz conservador de 51 anos indicado por Donald Trump à Suprema Corte, que nega as acusações. Chris é professora de Psicologia na Universidade de Palo Alto. Seu pronunciamento amalgamou os americanos em frente à TV e nas redes sociais. Trump, a bordo do Air Force One, pediu um monitor para acompanhar o depoimento.
Se Brett chegará ou não à máxima instância judicial dos EUA, o que desequilibraria a balança da Suprema Corte para o lado conservador, importa muito para a política americana, especialmente às vésperas da eleição que pode retirar a maioria republicana no Congresso. Para, nós, sociedade, o mais relevante é o relato de Chris, que trouxe à tona a prática ainda hoje comum em festas estudantis de universidades americanas: rituais de iniciação nas repúblicas e abusos, regados a álcool e drogas, depois de jogos de futebol nas faculdades.
O relato da psicóloga que teve a coragem de enfrentar a opinião pública, em geral puritana, dos Estados Unidos não difere de outras estudantes de 30 anos atrás ou de hoje. Em pesquisa realizada em 2015 em 27 universidades, algumas delas catedrais do saber como Harvard, Yale e Columbia, 23% das estudantes responderam terem sido sofrido abuso, por meio de ameaças, forças ou por conta de coação com uso de drogas e álcool. Dez por cento afirmaram ter sido estupradas.
Como os padres pedófilos ou as matanças em escolas por atiradores solitários, a violência sexual nas universidades é tabu de uma sociedade doente. No livro "Missoula" (Companhia das Letras), Jon Krakauer, autor de "No ar rarefeito", conta o exemplo da bucólica cidade de Montana, onde houve 350 acusações de agressão sexual, entre 2008 e 2012 — grande parte relacionada ao time de futebol americano do circuito universitário local, os Grizzlies. Outra obra aterradora é o documentário The Hunting Ground (disponível na Netflix), que aborda onda de ataques sexuais em faculdades e o esforço de funcionários para encobrir os crimes.
A boa notícia é que o mesmo espírito do tempo que levou ao poder um presidente como Trump, que já pronunciou palavras de teor machista e por vezes misógino, é este no qual mulheres não se calam para os abusos do presente ou do passado. Depois de varrer o entretenimento, respingar no Oscar, a verdade sobre crimes sexuais chega ao centro do poder americano. Pelas palavras e lágrimas de mulheres fortes como Chris.