O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) é uma espécie de presidente do mundo, ainda que, nos tempos atuais, a entidade seja muitas vezes questionada por sua pouca eficácia em evitar conflitos. Kofi Annan, morto neste sábado, encarnou como nenhum outro comandante do organismo multilateral o espírito do nosso tempo, tendo experimentado os dilemas e dramas das conturbadas relações internacionais da virada do milênio.
Em janeiro de 1997, tornou-se o primeiro negro a chegar ao mais importante cargo da diplomacia, chamando a atenção para a seu país natal, Gana, um oásis de democracia e relativa tranquilidade em meio a um continente com instituições ainda frágeis. Vivia-se a expectativa da virada do século/milênio, quando teorias conspiratórias alardeavam o fim do mundo. Como vimos, o planeta não acabou, embora o que veio logo depois dos fogos da celebração chacoalhasse as relações internacionais tanto quanto se um cometa desgovernado atingisse a Terra: o 11 de setembro de 2001.
Annan viveu os desafios que se seguiriam à derrubada das torres gêmeas: a era do terrorismo global, a resposta americana contra os talibãs no Afeganistão, a caçada a Osama bin Laden e a sua Al-Qaeda e veria sua ONU ser atropelada pelo governo de George W. Bush no Iraque. Naquele 2003, Annan assistia dia após dia sua voz e a de seus inspetores de armas serem silenciadas pelos ecos de uma invasão ilegal sob a falácia das nunca encontradas armas de destruição em massa de Saddam Hussein.
Até o fim da vida, o diplomata denunciaria a ação americana à margem do Conselho de Segurança e do Direito internacional e pagaria um preço alto por peitar os falcões da Casa Branca: seu passado seria devassado, e viriam à tona suspeitas de corrupção no programa Petróleo por Comida no Iraque. Ele livrou-se da acusação de favorecimento de seu filho no caso.
Pude ver Annan de perto no velório de seu amigo, Sergio Vieira de Mello, no Rio, morto no Iraque em 2003, no atentado contra a sede da ONU. E imaginei se havia alguma culpa por trás daquelas lágrimas ao lado do caixão no Palácio da Cidade, sede da prefeitura carioca. Afinal, a ida do diplomata brasileiro para Bagdá havia sido uma decisão pessoal de Annan. Outro fantasma que o acompanharia por décadas fora a leitura equivocada dos sinais de que um dos maiores genocídios do século 20 estava por acontecer em Ruanda, à época em que fora chefe do Departamento de Operações de Paz da ONU.
Erros fazem parte da vida de grandes homens e mulheres. E Annan nunca jogou para baixo do tapete as falhas, inclusive essa que levou à morte de 1 milhão de pessoas na sua África. Ele deixa como legado uma ONU mais preocupada com o meio ambiente, com os direitos humanos, ideais de certa forma reunidos nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, espécie de cartilha que as nações devem seguir para o mundo não acabar tão cedo.
Ao sair do posto, em dezembro de 2006, após dois mandatos, ele deixaria também como exemplo algo mais raro hoje em dia: demonstrações de otimismo e humanismo, incorporadas na figura de defensor intransigente do diálogo em uma arena global cada vez mais anárquica.
Gentil, nada sisudo e franco até demais, rompendo com o arquétipo do diplomata tradicional, foi pop como nenhum outro secretário-geral. Ele era conectado com seu tempo. Se alguém foi O CARA nessas últimas turbulentas décadas do mundo, esse homem foi Kofi Annan.