Ao cancelar nesta quarta-feira a participação da seleção argentina no amistoso contra Israel, previsto para o próximo sábado, em Jerusalém, o presidente da Associação de Futebol Argentino (AFA), Claudio Tapia, afirmou:
— O futebol começa e termina no campo e nada tem que ver com a violência.
Não é verdade.
De tempos em tempos, o futebol transcende as quatro linhas e extrapola das arenas para a política. Ao longo da História, várias foram as vezes em que, enquanto a bola corria no gramado, do lado de fora, telefones nervosos tocavam nas chancelarias e diplomatas arrancavam os cabelos para tentar evitar confrontos internacionais.
Às vezes, o fair play não vingou. E a paz perdeu.
O episódio mais famoso em que a política invadiu o campo foi na chamada Guerra do Futebol, eternizada no livro de mesmo nome do jornalista polonês Ryszard Kapuscinski. Foi durante as eliminatórias da Copa de 70. Vizinhos belicosos na América Central, El Salvador e Honduras faziam uma série de três jogos. No primeiro, em 8 de junho de 1969, Honduras ganhou por 1 a zero, em casa, na capital Tegucigalpa. A segunda partida foi em San Salvador, capital rival, e os salvadorenhos deram o troco: 3 a 0. O último, na cidade do México, El Salvador ganhou de novo, 3 a 2.
O segundo jogo foi o mais dramático, com jogadores expulsos em campo e, fora dele, torcedores perseguidos. A guerra explodiu em 14 de julho, durou cem horas e deixou 2 mil mortos. Só terminou com intervenção da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Outro momento de tensão foi durante a Copa de 1974, auge da Guerra Fria. Alemanha Oriental e Alemanha Ocidental, divididas pelo Muro de Berlim, se enfrentaram pela primeira e única vez na História. Na última rodada, em 22 de junho, no Volksparkstadium, de Hamburgo, os comunistas venceram por 1 a 0, de forma surpreendente.
Esperava-se clima de guerra, mas a Cortina de Ferro que dividia o planeta era uma metáfora apenas do lado de fora. Embora disputadíssima, a partida foi limpa — e teve até troca de camisas entre os jogadores depois do fim do jogo. Longe dos olhos e das câmeras, claro, para não atiçar o governo comunista. Havia 60 mil torcedores no estádio, sendo apenas 2 mil da Alemanha Oriental escolhidos a dedo pelo partido para a propaganda oficial.
Na Copa da França, 1998, aquela traumática para o Brasil por conta do piripaque de Ronaldo Nazário, quis o destino que os inimigos EUA e Irã se enfrentassem. O medo era de que as animosidades fossem transportadas para o Stade de Gerland, em Lyon. O governo iraniano tratava o duelo como conflito. Mas, mais uma vez, os atletas deram espetáculo em campo (Irã 2 x EUA 1) e fora dele — sem conflitos.
Assim como o futebol extrapola as quatro linhas, também é verdade que a política às vezes adentra o gramado. Basta lembrar os casos de corrupção na Fifa que culminaram na renúncia de Joseph Blatter, em 2015.
O jogo em Jerusalém seria carregado de simbolismos em um momento extremamente sensível nas relações entre israelenses e palestinos desde que o presidente Donald Trump decidiu transferir a embaixada dos EUA de Tel Aviv para a Cidade Sagrada – episódio condenado pela maior parte da comunidade internacional. Antes de a seleção de Israel entrar no gramado, o jogo já estaria ganho para o governo no campo da propaganda.
O amistoso seria parte da comemoração dos 70 anos do Estado de Israel e estava no roteiro uma visita dos jogadores argentinos ao Muro das Lamentações, local sensível, não só pelo simbolismo religioso e histórico, mas pela geografia: logo acima, fica a Esplanada das Mesquitas, onde estão os templos sagrados para o Islã. Seria uma provocação desnecessária para uma nação como a Argentina que, nos anos 1990, sofreu dois atentados extremistas – contra a sede da embaixada israelense, em 1992, e contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), dois anos depois —, que deixaram 114 mortos.
Por que não mudar o local do amistoso? Cancelar a partida é também uma derrota antecipada. Nessa, perdem Argentina, Israel, os torcedores que haviam comprado ingresso, as crianças que sonhavam ver Messi. Mas é uma derrota, sobretudo, da paz. A vitória é da intolerância.