A imensa rachadura na superfície do Quênia, que no futuro deverá separar em duas a África, dando origem a um novo continente, não surpreende um dos maiores conhecedores da geologia da região. Mas impressiona.
– O planeta é dinâmico, aí está a prova – maravilhou-se o professor Rualdo Menegat, membro do Fórum Latino-americano de Ciências Ambientais, cátedra da Unesco para desenvolvimento sustentável, ao visualizar as imagens.
Docente do Instituto de Geociências da UFRGS, Menegat calcula em mais de 8 mil metros a profundidade do buraco. Segundo o pesquisador, se um ser humano conseguisse viajar até o fundo da fenda, encontraria magma. O fenômeno no leste da África é acompanhado há décadas por cientistas como Menegat, que têm oportunidade de analisar a formação de um continente a partir de evidências da superfície.
O professor cita outros exemplos nascidos a partir de rachaduras como essa: a separação entre a África e a América do Sul e, "mais recentemente" (há 15 milhões de anos), a formação do Mar Vermelho. Em entrevista à coluna, ele explica o fenômeno que deve dividir a África:
As imagens são impressionantes. Qual a explicação científica para a rachadura?
O planeta é dinâmico! E aí está a prova. Estamos acostumados a ver notícias de terremotos, de vulcões, de tempestades, de furacões. Eis, agora, uma evidência de um importante fenômeno do planeta: a rachadura, o afastamento, a quebra de um continente.
Há registros históricos de rachaduras de milhões de anos atrás, como a separação da América do Sul da África, mas há outros exemplos recentes, além deste no Quênia?
Sim, é comum no planeta os continentes se romperem, assim como há 65 milhões de anos a América do Sul se separou da África. Esses dois continentes, junto com Austrália, Antártica e Índia formavam o continente do Gondwana. Esse continente se fragmentou, formando os continentes atuais no Hemisfério Sul, além da Índia, que derivou para o Norte, colidindo com a Ásia e formando o Himalaia. Para o planeta, é comum a fragmentação. A grande questão é presenciarmos esse processo na superfície, como está ocorrendo na África.
Onde estão os outros casos?
Além da África, existem fenômenos parecidos na América do Norte, onde a falha de San Andrés, na Califórnia, desliza horizontalmente, fragmentando a parte oeste dos EUA. Mas, enquanto nos EUA a falha de San Andrés desliza horizontalmente, na África elas (as placas) se separam mesmo, é um afastamento. Também temos exemplos na Islândia. É uma ilha que está sobre a dorsal do Atlântico, o local onde as placas da Europa e da América do Norte se separam. Mas a forma como temos no leste da África é o exemplo mais impressionante porque se trata de uma rachadura que vai desde o norte de Somália, no Golfo de Áden, até o sul, em Moçambique, com comprimento de 6 mil quilômetros de rachadura.
O senhor já sabia que isso estava ocorrendo?
Sim, a gente sabe. Isso está acontecendo há alguns milhões de anos. Trata-se de uma separação do continente africano em dois. Vamos ter daqui a 10 milhões de anos um microcontinente do tamanho da região nordeste, sudeste e sul do Brasil, que vai se separar da África, indo para o Leste, enquanto o restante da África, vai ficar a Oeste.
Qual a profundidade da rachadura?
Essa é uma rachadura que vai até o topo do manto da Terra, uma profundidade de mais ou menos 8 quilômetros a 10 quilômetros. Ela se expressa na superfície na forma como vimos no Quênia, como grandes fissuras. Toda essa região leste da África forma uma grande paisagem, uma grande região fisiográfica que chamamos de Vale do Leste da África.
Mais de 8 quilômetros significa a altura do Everest. Imaginando que uma pessoa fosse até o fundo, o que encontraria?
Encontraria magma, porque essa abertura do continente africano se dá com o rompimento do que chamamos de Litosfera. É a camada sólida mais externa da Terra. Na África, ela está muito fina, por isso está se rompendo. Sob a Somália e todo esse Vale do Leste da África há uma pluma de calor. O núcleo da Terra é muito quente. Na superfície da Terra, estamos a uma temperatura média de 18ºC, enquanto o núcleo tem uma estonteante temperatura de 7 mil graus centígrados. Então, há uma perda de calor. Esse calor sai do núcleo e não de forma homogênea. Há alguns pontos em que a perda de calor é maior. Um desses pontos está situado exatamente sob esse vale na África, que faz com que ali a Litosfera fique delgada, mais fina. E ela vai se rompendo, quase como um puxa-puxa, vai ficando cada vez mais fina. Até que daqui a 10 ou 15 milhões de anos haverá a ruptura total. Em outro caso, a placa da Arábia se desloca da África, abrindo o Mar Vermelho. O que estamos vendo no Quênia, com as fissuras, é um estágio anterior à abertura do Mar Vermelho.
Qual a velocidade desse afastamento?
A placa da Somália está se afastando da placa da Núbia a uma velocidade de 2,5 centímetros ao ano. Você pode dizer, "ah, mas isso é muito pouco". Mas veja, é a velocidade de crescimento das nossas unhas. Não é pouca coisa. Cada vez que corto a unha é tanto quanto a Somália está se afastando da placa da Núbia.
No caso do afastamento da América do Sul da África, continua acontecendo, né? Daqui a milhares de anos, estaremos colados na Austrália?
Se o movimento fosse linear, sim. Mas os movimentos geológicos costumam não ser lineares. Pode ser que, daqui a algum tempo, essa força que empurra a placa da América do Sul para Oeste se inverta, e a América passe de novo a se aproximar da África. Os continentes, de quando em quando, atingem uma fragmentação máxima, que é a situação atual, e em outros períodos, eles confluem para uma conjunção máxima. As massas continentais se aglutinam. O que estamos vendo na África é como começa a fragmentação de um continente. É o estágio inicial. O segundo estágio é como está o Mar Vermelho, onde há um afastamento de 300 quilômetros, que se deu em 15 milhões de anos. Daqui a 15 milhões de anos, a placa da Somália estará afastada uns 300 quilômetros da África. E o terceiro estágio é o Atlântico, um estágio já jovem, enquanto o Mar Vermelho é um bebê e, na Somália, é uterino. Na medida em que a Somália vai se afastando, vai entrando o mar, abrindo uma fenda. E assim se formam os oceanos.
Há risco de uma fissura como essa ocorrer no Brasil?
Enquanto na Somália e no leste da África, estamos tendo um afastamento. No Brasil, a placa da América do Sul é espremida contra a placa de Nazca. No caso do Brasil, os esforços são compressivos, de empurrar uma placa contra outra. No Quênia, é de afastamento. A placa de Nazca é o assoalho do Pacífico, ela freia a migração da América do Sul para o Oeste.
Não tem risco de "separatismo" no sul do Brasil, então?
(Risos) Não tem risco, não é um fenômeno previsto, não há evidências de que isso possa acontecer na placa da América do Sul.