A mulher entra no hospital caminhando, com fortes contrações. O bebê chega de parto normal. Em seis horas, a mãe veste a burca, tradicional vestimenta da etnia pashtun, que está guardada ao lado do leito. E deixa o quarto assim como entrou: caminhando.
A cena se repete uma, duas, 10, 50 vezes na maternidade a cada dia no complexo da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Khost, no Afeganistão. A responsável pelos partos em um dos locais mais isolados do planeta era a ginecologista Liciene Miriam Jarmola, da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Os 50 procedimentos por dia, ou seja, dois a cada hora, na maternidade de Khost é impressionante. Em um “plantão puxado” em Porto Alegre, como diz a paranaense radicada no Rio Grande do Sul, ela chega a fazer no máximo oito partos.
– As afegãs têm muitos filhos. São as mulheres mais fortes que que já vi. Não interessa se é o primeiro, o 10º ou 15º filho. Elas entram e saem caminhando. Não interessa se pariu bebê de um quilo e meio ou gêmeos, trigêmeos ou um bebê de cinco quilos e meio. É igual. Cheguei lá, olhei a paciente levantando da sala de parto e falei: “O que é isso?” – lembra Liciene, 36 anos.
Natural de Curitiba, formada pela Universidade Federal do Paraná, a médica se mudou para Porto Alegre para fazer estágio no Hospital de Clínicas e, depois, residência no Conceição. Em 2008, começou a trabalhar na Santa Casa. A ideia de integrar a missão veio em novembro do ano passado, quando assistiu a um comercial da organização na Globonews.
– Vou doar. Mas doar o quê? – questionou-se. – Então, pensei em trabalhar.
Liciene fez uma inscrição pelo site, e foi procurada por telefone. Uma especialista explicou os possíveis destinos, zonas de guerra e fome. Para viajar, ela teria de se preparar psicologicamente, mas também financeiramente – o salário de três meses seria menor do que o que estava acostumada na Santa Casa.
Uma semana depois de ser aceita, a médica soube o destino. Khost fica a 30 minutos de voo de Cabul, na fronteira com o Paquistão. Em 1º de agosto de 2017, embarcou para a Ásia. No voo entre Dubai e Cabul, só havia ela e outra mulher. O dress code já sabia de cor: ao sair do avião, lenço para cobrir o cabelo.
Nos três meses em Khost, a médica nunca saiu do complexo da MSF, formado pela maternidade e alojamentos. Para deixar o local, só em comboio organizado, em geral para fazer compras em um mercado.
– Nos dias em que havia passeio, estava de plantão. Então, pensei: “Tô presa aqui dentro, vou ficar aqui” – resignou-se.
Não há militares no complexo. A MSF não aceita seguranças ou armas em suas dependências. Liciene não sentiu medo em nenhum momento, ainda que fosse justificável. Em 2015, um bombardeio, supostamente americano, atingiu um hospital da organização em Kunduz, no norte do Afeganistão, matando pelo menos 42 pessoas. Entre os mortos estavam 12 funcionários da MSF e civis.
Em Khost, o complexo da MSF conta com 400 voluntários, a maioria locais. Expatriados, como chamam os estrangeiros, são cerca de 15, e poucos médicos. Além de Liciene, havia uma ginecologista australiana, uma pediatra malaia e uma anestesista filipina. Cirurgias de cesariana eram raras:
– Você não faz (a operação) por qualquer motivo. Não pode comprometer o futuro obstétrico da paciente. Com a cesárea, ela fica com uma cicatriz. Certamente, irá engravidar de novo. E vai ser logo. A cicatriz aumenta o risco de ruptura uterina. Então, você sempre está pensando que ela não é uma mulher que vai ter dois ou três filhos e parar. Elas são a matriz da família. Você não pode prejudicar.
Em geral, quem acompanha as pacientes são a mãe, a cunhada ou uma irmã. O marido fica em outro setor, totalmente isolado.
– Se eu precisasse falar com o marido, tinha de ir lá, pedir para o rapaz da portaria me anunciar. Havia um lugar reservado para eu falar com o familiar do sexo masculino – lembra.
No Afeganistão, homens podem ter até quatro esposas. Essa especificidade da cultura afegã acabou gerando um episódio marcante na missão. Certo dia, uma paciente foi até a médica e contou que estava grávida de oito meses. O bebê havia morrido. A mãe não tinha nenhum exame:
– Eu fiz a ecografia e falei: “Realmente, está morto, vamos ter de internar para induzir e nascer”. A familiar que a acompanhava começou a chorar. Pensei: "Deve ser a sogra ou a mãe".
Não era. A acompanhante era a primeira esposa do marido.
– Ela havia tentado engravidar durante muito tempo e não tinha conseguido. Daí, ele se casou com aquela outra mulher. Essa criança era muito esperada, porque era uma segunda esposa que estava tentando engravidar. Ela havia conseguido levar a gestação até os oito meses, mas perdeu. Aí você percebe que as esposas do mesmo marido se comportam como irmãs. A primeira mulher demostrava mais tristeza do que a própria paciente – conta.
Em alguns momentos, Liciene era motivo de curiosidade:
– Você tem filhos?
– Não – respondia.
– Como assim? Na minha casa, tem 20 pessoas. Ai, que triste, né doutora? – surpreendiam-se.
Dona da Lola, uma Golden retriever de sete anos, e do Pepi, vira-lata de 10, Liciene sempre gostou de viajar. As paredes de sua sala, em Porto Alegre, são ilustradas por fotos de Roma, Londres, Florença e Veneza. As de Khost, como esta maior, que ilustra a página, também estão lá.
– O Afeganistão está em guerra desde a década de 1970, mas tem um povo muito gentil, que está todo o tempo te perguntando se tu estás feliz trabalhando ali
e te agradecendo por estares ali – conta Liciene, enquanto já pensa na nova missão.