No final de março de 2016, quando Donald Trump deixava de ser um milionário azarão e passava a ser tratado como o provável candidato do Partido Republicano à Casa Branca, o editor executivo do Washington Post, Martin Baron (que havia comandado a redação do Boston Globe na investigação dos crimes da Igreja Católica, tema do filme Spotlight), chamou seus melhores repórteres e editores. Dividiu-os em dois grupos: queria passar a limpo a vida de Trump e de sua rival democrata, Hillary Clinton.
Encarregado de comandar a investigação sobre o milionário, o jornalista Marc Fisher, editor sênior do Post, esteve a frente de uma equipe de 20 pessoas. Ao longo de três meses, repórteres viajaram à Alemanha e à Escócia para levantar a história dos ancestrais do candidato, estiveram no Queens, onde Trump cresceu, visitaram os campi de suas faculdades, no Bronx e na Filadélfia, e conheceram os empreendimentos no Panamá, na Rússia e no Azerbaijão.
O resultado: mais de 30 artigos publicados ao longo da campanha e o livro Revelando Trump, recém lançado no Brasil pela editora Alaúde, considerado pela crítica a melhor biografia sobre o presidente.
Além do trabalho de pesquisa, das viagens, das conversas com vizinhos, funcionários de seu império empresarial, afetos e desafetos, foram 25 horas de entrevistas exclusivas com o próprio Trump.
Fisher foi correspondente na Alemanha entre 1989 e 1993, período dramático da queda do Muro de Berlim e do fim da República Democrática Alemã. Desse tempo, escreveu After the Wall: Germany, the Germans and the Burdens of History (Depois do Muro: a Alemanha, os Alemães e o ônus da História, sem tradução no Brasil). Seu parceiro de projeto, Michael Kranish foi correspondente do Boston Globe por 30 anos e já escreveu biografias de candidatos derrotados à presidência, como John Kerry (2004) e Mitt Romney (2012). Não foi o caso de Trump.
Os repórteres anteviram que, muito do que assistimos hoje na presidência, faz parte da personalidade de Trump, que se entende muito mais como um showman do que como um gestor. O presidente trabalha sua imagem pessoal como uma marca. Tuita freneticamente. Adepto do estilo "falem mal, mas falem de mim", ele acredita que qualquer menção na imprensa – elogiosa ou não – resulta em seu benefício.
Embora se mostre agressivo em relação aos jornalistas, no íntimo sabe que depende da imprensa para se manter em evidência.
O candidato colaborou com os repórteres que estavam construindo sua biografia, mas deixou claro que, se não gostasse do livro, o denunciaria e tomaria medidas judiciais. Na noite anterior ao lançamento, tuitou: "O @WashingtonPost produziu às pressas um livro difamatório sobre mim... Não comprem, é chato!". Ele não só não havia lido a obra, como sequer havia visto o livro quando tuitou.
Desde Washington, Fisher contou, por telefone à coluna, os bastidores dos encontros com Trump e como funciona a cabeça do homem que, aos oito meses de governo, vive às turras com a imprensa, governa o país pelo Twitter, está no epicentro de um escândalo por conta da suposta interferência russa em sua eleição e ameaça apertar o botão da guerra, com "fogo e fúria", contra a Coreia do Norte. A seguir, os principais trechos da conversa:
Trump governa os EUA mais como empresário ou como showman?
Ele realmente vê a si mesmo muito mais como showman e animador. Ele vê a si mesmo como alguém com grande talento para o marketing. Foi assim durante a campanha, é assim que tenta levar a presidência. Ele vê a si mesmo como porta-voz de sua própria marca mais do que como gestor. Ele nunca foi realmente um bom gestor. Seus negócios faliram, seus cassinos foram à bancarrota. Muito de seus sucesso por anos deveu-se ao marketing de si mesmo. Na presidência, é a mesma coisa. Ele realmente é um showman. Ele entende que seu principal poder é o de persuadir as pessoas. Há uma desconexão entre como ele operou por toda a sua vida e as demandas de um presidente.
Sabemos que Trump adora se comunicar pelo Twitter, mandando recados aos americanos, xingando a imprensa, muitas vezes governando o país por meio da plataforma. Ele próprio tuíta as mensagens?
Sabemos que a grande maioria de seus tuítes são inteiramente seus. Sabemos disso porque os tuítes que ele faz são postados tarde da noite ou muito cedo da manhã, quando não há membros de seu staff por perto. São escritos em seu próprio smartphone. Esses tuítes frequentemente têm erros de ortografia e de gramática, próprios de Trump. Algumas vezes, durante o trabalho, ele costuma ditar os tuítes para membros da equipe. Eles se encarregam de limpar a ortografia e a gramática. Há clara diferenças entre essas categorias de tuítes, observamos grandes diferenças no tipo de linguagem.
Participaram do livro 20 repórteres, dois checadores e três editores. Foram mais de 20 horas de entrevistas exclusivas com Trump. De quantas você participou diretamente e que percepção teve do presidente nessas ocasiões?
Ele nos deu 25 horas de entrevistas para o livro. Tivemos um grupo trabalhando no livro por 24 horas. Estive em cinco dessas entrevistas. Ele foi extremamente generoso e gracioso nessas ocasiões. A maioria das entrevistas seria de uma hora, meia hora. Muitas vezes, ele dobrava ou triplicava esse tempo. Dizia: "Continuemos…" E se divertia com isso. Mesmo no auge da campanha, com frequência surgia entre os repórteres a pergunta, por que está dedicando tanto tempo para a gente? É assim que ele sempre gerenciou seus negócios, promovendo-se por meio da imprensa.
Como ele se comportava durante as entrevistas?
No privado, ele é muito mais respeitoso do que se pudesse esperar ao olhar seus discursos durante os comícios. É um contador de histórias. É muito difícil estabelecer um verdadeiro diálogo. Ele é impulsivo na forma como fala. Não é alguém que lê muito. Ele realmente não tem muita informação. Tem algumas ideias para o governo que ele pega assistindo à televisão, não é sua filosofia, seus princípios. Ele está sempre improvisando.
Trump disse a vocês que não leria o livro, correto?
Certo. Ele disse que o livro era ruim. Dissemos: "Como o senhor sabe que é ruim se não o leu?". Ele disse "Pessoas me disseram". É dessa forma que opera.
Em uma entrevista, você disse que Trump se comporta como se fosse um menino na mesa dos adultos, durante encontros com líderes internacionais. O que ele demonstrou saber sobre relações internacionais durante as conversas com vocês?
Muito pouco. Eu perguntei a ele, quando começou a ficar muito claro que era um candidato muito forte, como estava se preparando, o que lia a respeito dos principais assuntos que teria de lidar. Ele disse: "Eu não faço isso". Ler briefings ou relatórios. Ele disse que a forma como iria aprender sobre essas coisas deveria ser a partir das pessoas que viriam até ele e falariam com ele. Disse que, em 30 segundos, saberia o que fazer. É a forma como opera como presidente. Não lê relatórios nem briefings, a principal atividade a que a maioria dos presidentes dedica seu tempo. Ao contrário, ele gosta que as pessoas façam briefings orais, muito rápidos, e ele sabe o que fazer. Não há muitos detalhes, contexto.
Como é cobrir a Casa Branca hoje, com um presidente que trata os jornalistas como inimigos?
Um pouco disso é show. Alguns assessores rebatem matérias, são muito agressivos com os repórteres, telefonam para eles. Essa é a parte mais difícil desse presidente. Mas, por outro lado, ele é muito mais acessível do que outros. Ele telefona para os repórteres, ele os vê, é muito mais aberto e acessível.
Ele próprio telefona para os repórteres?
Sim, ele liga da mesa dele. Ainda que goste de pintar um retrato da imprensa como sua inimiga, ele depende profundamente de sua imagem na presidência e ele respeita as organizações de notícias sérias. É um consumidor voraz notícias todos os dias. Ele recebe uma pasta com histórias positivas que sua equipe separa para que ele leia. Ele sempre julga sua posição e seu sucesso no trabalho a partir de como está sendo coberto pela imprensa.
No Brasil, houve dois processos de impeachment depois da redemocratização. Trump está no centro do escândalo sobre a suposta interferência russa. Mas você não acredita em um impeachment. Isso porque não essa medida não é comum na política americana?
De fato, não é. Tivemos na história Bill Clinton, mas não é comum usá-lo (o impeachment). É muito difícil usá-lo, especialmente nesse caso, quando um presidente tem o poder no Congresso (Trump tem maioria na Câmara e no Senado). Impeachment seria o último recurso. Não veremos nenhum movimento sério nessa direção até que Trump perca o apoio de sua base.
Por que os democratas não conseguem se conectar com os eleitores, especialmente com a classe média. Qual a lição devem fazer para retornar à presidência em 2020?
O discurso dos democratas não evoluiu desde a mensagem perdedora do ano passado. Eles não acordaram para o fato de que muitos antigos apoiadores já não seguem na mesma direção, em temas como identidade política, dividindo o país, em assuntos sociais. Os democratas não têm nenhuma mensagem de união. Eles não têm um candidato plausível contra Trump. Acho que os democratas precisam criar um novo discurso.
Cobrir a política em Washington é como aparece na série House of Cards? Você assiste à série?
Não tenho acompanhado muito a série. Então, não posso dizer se há muitas semelhanças. Mas penso que a percepção geral das pessoas é de que os fatos reais a que estamos vivendo são muito mais mais estranhos do que qualquer filme já tenha mostrado. Muitas pessoas ficam viciadas em uma ou outra série, mas andam gastando seu tempo com o show de Trump. Mesmo que não seja entretenimento ou algo que dê satisfação.