Nesta sexta-feira, às 19h30min, aplauda da sua janela os profissionais da saúde de todo o Estado.
Contratado no início da pandemia, Felipe Gonçalves nunca viu a boca, o cabelo, o sorriso e o nariz da maioria dos colegas. Ele só enxerga os olhos – é o que sobra entre a touca e a máscara. A verdade é que o próprio Felipe, quando tira aquele monte de apetrechos e olha para o espelho, mal se reconhece ultimamente.
– Estou cheio de marcas – diz o médico emergencista de uma UPA em Porto Alegre.
A mancha mais escura é no nariz, dois dedos abaixo das sobrancelhas: aquele ferrinho da máscara machucou tanto, todos os dias, tantas vezes, que a escoriação nunca mais saiu. Há também dois vincos profundos, um em cada maçã do rosto, que conferem a Felipe rugas precoces para quem tem só 39.
Mas essas são marcas físicas, corporais. Antes das emocionais, uma pergunta: já pensou como é ir ao banheiro com a paramentação que as equipes usam? Em primeiro lugar, não é recomendável ir ao banheiro, nem beber água, nem comer, nem coisa nenhuma. São horas e horas com máscara apertada, óculos de proteção, touca, dois pares de luva, propés e macacão amarrado no pescoço, na cintura, na frente e atrás.
Agora, claro, se tiver muito que ir ao banheiro, paciência, desde que saia da unidade, tire toda a roupa, jogue fora o macacão, higienize os equipamentos, vista tudo de novo e, bem, aí já se passaram uns 15 minutos. Não há tempo para isso quando há gente morrendo por todo lado.
Na hora do intervalo, vejo colegas pelos cantos, sentados, e eu só enxergo os olhos deles. Com frequência estão marejados.
FELIPE GONÇALVES
Médico emergencista
– Esse papo de que a gente se acostuma com a morte é a maior mentira. Sempre foi dolorido quando alguém morria, mas, agora, a gente vira a cabeça e são 360 graus de gente sofrendo –conta Felipe.
Ele diz que o barulho, em determinado momento, beira o insuportável. As mangueiras de oxigênio emitem uma espécie de assoprão – não param nunca, é um chiado incessante. Os monitores apitam o tempo inteiro e, quando isso ocorre (o tempo inteiro!), é sinal de algo errado. As equipes gritam para ser ouvidas, e decisões difíceis são tomadas em meio ao caos.
– Todo dia a gente escolhe quem vai primeiro para a UTI. É horrível. Na hora do intervalo, vejo colegas pelos cantos, sentados, e eu só enxergo os olhos deles. Com frequência estão marejados.