O senador Lasier Martins (PSD) apresentou um projeto de lei que, se for aprovado, proibirá obras "que incitem a prática de crimes ou atentem contra a moral" de ter acesso aos benefícios da Lei Rouanet.
– A verba deve se destinar a projetos que não despertem polêmicas (?), que tenham um sentido humanitário (??) e edificante (???). A lei deve ser canalizada para projetos positivos (?????) e indiscutíveis (?????????) – foi o que disse Lasier à Rádio Senado (as interrogações são minhas).
Poucas vezes na vida uma declaração me soou tão horrenda. Primeiro, porque não consigo pensar em nada mais fundamental na arte do que "despertar polêmicas". Já o "sentido humanitário", embora seja muito "edificante", é algo que espero da Casa do Menino Jesus de Praga. E os tais "projetos positivos", bem, são o que eu gostaria de ver Lasier propondo. Por fim, "indiscutíveis" são a única coisa que obras de arte não podem ser.
Tudo isso eu já disse no ano passado, é verdade, quando o Santander Cultural cancelou a mostra Queermuseu com uma justificativa que o senador deve ter adorado: "Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana". Credo, por favor.
A arte não tem que "elevar a condição humana", nem "gerar reflexão positiva", nem ter "sentido humanitário", nem exaltar o belo, nem acompanhar seu tempo, nem dizer o que os outros querem que ela diga. A arte é o que o artista quiser que ela seja, e acabou.
Pode-se criticar, detestar, falar mal, questionar, mas vetar o exercício da arte é só e somente só censura. Em entrevista a GaúchaZH, após dizer que a Queermuseu "incentivava a prática da pedofilia e da zoofilia" – o que é uma aberração interpretativa, visto que retratar um crime é diferente de incentivar um crime –, Lasier garantiu que sua intenção não é censurar nada:
– Não estamos proibindo essas exibições de acontecerem. O que se está proibindo, vedando, é que o dinheiro público seja usado para isso.
Ora, dá no mesmo, senador. Todas as principais democracias do planeta têm políticas de incentivo fiscal para financiar produções artísticas – porque as produções artísticas menos populares, menos comerciais, jamais aconteceriam sem patrocínio, e sabe-se que as empresas preferem patrocinar justamente quem é mais popular e não precisa de patrocínio.
No Brasil, em 2017, segundo o economista Leandro Valiati, a cultura representou 0,62% de todos os subsídios fiscais concedidos pelo governo federal, um percentual ridículo.
Imagine, agora, se qualquer produção artística passasse pelo crivo de Lasier Martins, da Igreja Católica, do MBL ou de quem quer que fosse.
Saturno Devorando um Filho (1819), de Francisco de Goya, uma das pinturas mais célebres da história da arte – aquela em que o horripilante deus Saturno devora o corpo ensanguentado do próprio bebê recém-nascido – certamente seria vetado. Porque os censores seriam incapazes de compreender a fantástica alegoria de um pai que mata seu filho por medo de acabar destronado por ele.
– É um incentivo ao canibalismo! – gritariam, escandalizados.
E O Sonho da Mulher do Pescador (1814)? A influente gravura do japonês Katsushika Hokusai – que mostra dois polvos estimulando uma mulher na vagina, nos mamilos e na boca – faria Lasier Martins arrancar os cabelos que lhe restam, tamanha a pouca-vergonha daquela incitação à zoofilia. Poderia citar dezenas de outras obras, mas a questão nem é esta.
Ainda que uma criação artística seja de péssimo gosto – como de fato eram algumas da Queermuseu, concordo –, qualquer liberdade só é testada quando quem eu detesto pode se expressar. Deixar se expressar apenas quem "gera reflexão positiva" ou valoriza "o sentido humanitário", ora, isso qualquer ditador consegue.