Tradicionais opositores do atual projeto de revitalização do porto, a Associação Amigos do Cais Mauá (Amacais) e o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS) enviaram nota à coluna apontando uma "inaceitável quantidade de irregularidades" na proposta.
As entidades contestam "a idoneidade do empreendedor", insistindo que a garantia de crédito prevista no edital jamais foi apresentada pelo consórcio Cais Mauá do Brasil, vencedor da licitação.
"O poder público lança-se em aventura cujo eventual ônus será arcado pelo erário, ou seja, por nós, contribuintes", diz a nota, que elenca "evidências de temeridade financeira" e menciona "forte risco de fraude". O shopping e o estacionamento previstos para a área são classificados como "degradação funcional e estética".
Leia a íntegra da nota:
"ALERTA À POPULAÇÃO, AOS ADMINISTRADORES, À IMPRENSA E ÀS AUTORIDADES JUDICIAIS CAIS DO PORTO: FORTES SINAIS DE TEMERIDADE E RISCOS
Em que pese a necessidade de se realizar a revitalização do Cais, e o franco desejo da população de recuperar para o uso social aquela área fundamental da cidade, sucessivos erros e irregularidades têm impedido a realização do projeto que venceu a licitação em 2010, e de qualquer projeto. Perde-se, com isso, tempo precioso, enquanto vemos avançar inaceitável quantidade de irregularidades.
O dossiê de erros e irregularidades é grande. Da incompatibilidade com as normas patrimoniais do IPHAN à proposta imprópria, recusada por todos (técnicos e população) de impor shopping center na área histórica; da ilegalidade diante da lei de edificações à ausência de carta de crédito exigida no edital; da morosidade e abandono da área à crescente degradação à descaracterização do projeto original; da ausência de diálogo com a cidade à espantosa reconfiguração dos titulares do projeto - o grupo espanhol que venceu o edital não realizará o projeto, assumido por um grupo financeiro sem qualquer experiência neste tipo de empreendimento, e cercado de suspeitas muito graves.
É quanto à idoneidade do empreendedor que hoje se apresentam as maiores dúvidas, que lançam um alerta sobre a viabilidade e a conveniência de prosseguir-se esta novela. Há lista numerosa de maus indícios, suspeitas e fatos que indicam ser grande temeridade prosseguir tal projeto com estes empreendedores.
Aos fatos:
1) Contrariamente ao exigido no edital, o empreendedor jamais apresentou a garantia de crédito de R$400 milhões. Isto deixa claro que o grupo não possui o capital nem o crédito. Ao ceder área pública e patrimônio histórico para as obras, o poder público lança-se em aventura cujo eventual ônus será arcado pelo erário, ou seja, por nós, contribuintes. É inaceitável que não se cumpra o edital em uma de suas condições mais importantes para a segurança do negócio, em uma exigência pétrea neste tipo de contratação.
2) Em várias reconfigurações do capital, promovidas em favor de suspeita finalidade especulativa do Consórcio Cais Mauá, passaram a compor o grupo empresas arroladas na Operação Lava-Jato, em processo de recuperação judicial e com profissionais que estão hoje na cadeia, por seus malfeitos nesta área (fraude e gestão fraudulenta). Na tentativa de esquivar-se da justiça e da opinião pública, a empresa muda de nome repetidas vezes, mas ainda assim é alvo de investigações avançadas da Polícia Federal (Operação Fundo Perdido) e de vários processos na justiças cível e do trabalho, por inadimplências e dívidas várias.
3) O grupo empreendedor capta recursos de fundos previdenciários públicos, de forma especulativa, inclusive do IPE-RS, que já depositou R$ 17.700.000,00, entre outros do RS e de todo o Brasil. Todavia, o destino destes recursos é temerário, pois o projeto não avançou em nada (pelo contrário, deixou degradar-se a área, em arrepio ao seu dever de zelar) e, ainda pior, está em investigação avançada a suspeita de desvio do montante de R$ 160.000.000,00, obtidos nesta captação e, neste momento, desaparecidos. Um dos intermediários envolvidos com estas captações suspeitas encontra-se preso em Belém do Pará (Elton Félix Gobi Lira, Operação Olho de Tandera - PF).
4) Há suspeitas de que a superação de etapas do licenciamento deste projeto, a despeito de ilegalidades e inconsistências flagrantes (denunciadas por autoridades ilibadas e de alta qualidade técnica) esteja eivada de irregularidades. Como se explicar o desdém a indícios veementes de temeridade na condição do empreendedor? Haverá um momento para se examinar com rigor várias suspeitas de improbidade administrativa nos âmbitos municipal e estadual, bem como as formas de atuação de lobistas do empreendedor, inclusive no coração da Câmara Municipal de Porto Alegre.
Diante destes elementos de informação, consideramos altamente temerário o prosseguimento deste projeto nas mãos dos atuais realizadores, o grupo Consórcio Cais Mauá. Os administradores públicos, ao desdenharem tão gritantes fatos e suspeitas, aventuram-se a se envolver em rede de malfeitos, e põem em risco o erário público. Falta, neste momento, a prudência e a honestidade de se defender o bem público acima de tudo, e fere-se o princípio constitucional da responsabilidade no serviço público. Quanto aos administradores, ainda pior; quando se espera que defendam o interesse público, fazem o contrário, associam-se ao mau interesse privado contra o bem público. Assombra, igualmente, que setores da imprensa gaúcha fechem os olhos para tantas evidências de fraude, e apoiem candidamente o que se apresenta como agressão à sociedade rio-grandense.
Além de todas as evidências de temeridade financeira e forte risco de fraude, acima arroladas, é bom lembrar que o projeto tem sido vigorosamente contestado por sua má qualidade técnica, apresentando propostas inaceitáveis para tão valiosa área, recusadas pela população e por importantes setores técnicos e acadêmicos. Destaca-se, dentre as impropriedades, a intenção de impor um shopping center em área patrimonial com forte componente ambiental e vocação para parque e área de convívio. Um edifício de péssima qualidade arquitetônica que parece nem caber naquele lugar e prevê um estacionamento fechado no térreo, junto ao Guaíba, determinando a degradação funcional e estética de um dos principais patrimônios da cidade de Porto Alegre. A população do Centro Histórico, moradores e comerciantes, que não foi ouvida, e reclama da deterioração da qualidade de vida, pelo aumento da emissão de poluentes e da falta de planejamento para a mobilidade e acesso. A UFRGS, o IAB e muitos coletivos e profissionais têm reiteradamente alertado para estes erros, e apontado caminhos para sua solução. O empreendedor, guarnecido por relações suspeitas na administração pública, recusa o diálogo e avança com a intenção de realizar projeto notoriamente lesivo para a cidade de Porto Alegre.
Enquanto se arrastam estas pendências, a cidade vê degradar-se a área e mesmo provada do desfrute eventual desta preciosa fatia história e ambiental de Porto Alegre. Pior, vê crescer a demora em finalmente realizar-se o que a maioria ambiciona, e pelo que lutam os coletivos AMACAIS, o Cidade que queremos, o Defesa Pública da Alegria, o Cais Mauá de Todos, o Ocupa Cais, o IAB-RS e outras instituições e coletivos, e muitos cidadãos e cidadãs de alto espírito público, a ampla maioria da opinião pública: a devolução do Cais do Porto à cidade e sua revitalização com qualidade ambiental, arquitetônica, econômica, histórica e urbanística, e, sobretudo, a gestão desta obra com probidade e transparência.
Assinam:
Associação Amigos do Cais Mauá (AMACAIS) e Instituto de Arquitetos do Brasil Departamento do Rio Grande do Sul (IAB-RS)
IAB-RS
arq. Rafael Passos, presidente
AMACAIS
jorn. Katia Suman, presidente
prof. Francisco Marshall, vice-presidente"