"Não encontrar o caminho numa cidade não quer dizer muito. Mas perder-se numa cidade, como nos perdemos numa floresta, exige toda uma prática", escreveu o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940). Perder-se nos caminhos de Paris no estival mês de agosto exige uma prática singular, pois a capital francesa adota contornos de cidade fantasma. Em determinadas horas do dia, pode-se flanar em meio a grandes avenidas sem vislumbrar um carro sequer. Errando por certos bairros, a impressão é de que a cidade foi evacuada por alguma ameaça de ataque bacteriológico e só você não foi avisado.
Padarias, bares, restaurantes, lojas, teatros cerram suas portas sem a menor culpa. Para que o parisiense não fique sem sua sagrada baguete, uma lei municipal, herdada dos tempos da Revolução Francesa, obriga metade das 1,2 mil padarias da cidade a permanecer aberta no mês de julho, e a outra metade no mês de agosto. O padeiro que desrespeitar a regra poderá ser multado num valor entre 11 e 33 euros por dia. Nas vitrines gradeadas até a calçada, os avisos de "período de férias anuais" parecem zombar do veranista citadino, como se dissessem "azar o seu, que ficou aqui para sofrer na canícula, pois estamos nos refrescando nas cristalinas águas mediterrâneas". No meu prédio, nem a zeladora portuguesa fica para me fazer companhia. Mesmo os visitantes do verão passam raspando pela cidade, dão uma piscadela para a Mona Lisa, uma subidinha na Torre Eiffel, compram um perfume na Sephora e partem ao encontro das hordas praieiras.
Paris Plage
O leitor mais atento às notícias daqui poderá estar se perguntando: "Mas e a Paris Plage?". Sim, desde 2002, no mês de agosto, Paris ganha uma praia artificial à beira do Sena. Em números: 550 espreguiçadeiras, 450 guarda-sóis, 50 palmeiras e 3,5 mil toneladas de areia distribuídos ao longo de 2,8 mil metros às margens do rio. Mas, pudor urbano oblige, uma lei municipal proíbe o uso de trajes de banho mais ousados na efêmera orla. Quem infringir a ordem leva multa de 38 euros.
O balneário parisiense é um sucesso de público. Em 2015, foram registrados mais de 4 milhões de visitantes. A iniciativa foi, inclusive, copiada por outras cidades, como Berlim, Budapeste, Londres ou Roma. No início, usei o mesmo adjetivo constantemente evocado pelos europeus para designar os brasileiros, achei tudo aquilo "exótico". Praia em Paris, convenhamos. Mas, com o tempo, me disse, por que não? Afinal, é mais uma opção de lazer e diversão para os resistentes de agosto.
Dito isto, devo admitir que sou um veranista convicto de Paris. Não há nunca fila nos locais que permanecem abertos, nem hora do rush, os garçons estão menos estressados e as mulheres, mais álacres; há as quase 400 salas de cinema sempre à disposição, os terraços dos cafés, os piqueniques noturnos nos canais e a lua cheia nas pontes da cidade.
Argumentos em flamas
O escritor italiano Italo Calvino (1923-1985) notou certa vez, em seu exílio na capital francesa, que Paris era a paisagem interior de grande parte da literatura mundial, de livros que todos lemos e que contaram muito em nossas vidas. Antes de ser uma cidade real, Paris, para ele, foi uma cidade imaginada pela leitura, como "uma gigantesca obra de consulta".
Mas, para este agosto em Paris, talvez a leitura mais apropriada seja o filósofo romeno E. M. Cioran. Cioran nasceu em 1911, na Transilvânia, em 1947 se instalou em Paris e, para se libertar de seu passado, renunciou à língua materna e passou a escrever somente em francês. Morreu na capital francesa em 1995, aos 84 anos. As 434 páginas de Solitude et destin ("Solidão e destino", ed. Gallimard), seus escritos de juventude, antecipam o provocador pensador, mais tarde definido como esteta da desesperança ou pessimista incondicional. Aos seus 20 anos, já se notam as raízes de seu estilo corrosivo; o gosto pelo paradoxo, a ironia, o sombrio romantismo e o ódio às ideologias; seu anticristianismo feroz, a afirmação da tragédia humana e a descrença na História.
"Quando nos damos conta de que tudo é vão, mas que, absurdamente, continuamos a amar a vida, é preciso se decidir a realizar um gesto, uma ação. Pois é melhor se destruir no frenesi do que na neutralidade. É quase impossível viver de forma neutra, de considerar como um espectador esta terra maldita e adorada", escreveu aos 24 anos. "Não compreendo como pode haver neste mundo pessoas indiferentes, almas que não se atormentam, corações que não queimam, olhos que não choram. Declaremos falsas todas as verdades que não nos fazem mal e falsos todos os princípios que não nos inflamam. Que nosso verbo lance raios e que nossos argumentos sejam flamas!", disparava, em plena incandescência juvenil.
Cemitério e paraíso
No fundo, todo problema da cultura e do espírito é o do homem e de seu destino, constata o jovem Cioran, aos 21 anos. O sofrimento nos ajuda a compreender o mundo mais do que o entusiasmo, acrescentava: "Os homens que meditam sobre a morte não podem ser resignados; aqueles que meditam sobre a vida não podem ser que céticos". Para o filósofo, não há outra ética do que a do sacrifício. Com ironia refinada, já dizia, aos 22 anos: "Indigno-me com a ideia de que ninguém até agora morreu de alegria. Mas, talvez, seja preciso ter sofrido muito para morrer de alegria". O sofrimento é a escola da tolerância, defendia, ao mesmo tempo em que atacava o moralismo excessivo das religiões, responsáveis "pela destruição da espontaneidade irracional e do elã indefinido da vida".
Mais tarde, passado dos 70, confessou: "Sempre vivi em contradições e nunca sofri por isso. Sempre encarei as contradições como elas vinham, tanto na minha vida privada como teórica". Cioran admitia não somente ter aceito o caráter insolúvel das coisas, mas, inclusive, encontrado uma certa "voluptuosidade do insolúvel".
Aos 26 anos, aquele cuja única ambição intelectual era a de se tornar um "pessimista pensador de boulevard" afirmava: "Há na vida algo da histeria de uma primavera terminal. Um caixão suspenso nas estrelas, uma inocência em putrefação, um vício floral. Esta mistura de cemitério e de paraíso...". Do puro Cioran em pleno agostar parisiense, em meio a uma Paris Plage sob rígida vigilância policial diante da permanente ameaça terrorista no país.