Devo ser bipolar, não exatamente no sentido do humor, mas sim dos estados de espírito relativos à situação social e política que está nos tocando viver. Quanto ao polo depressivo, deve-se basicamente ao clima de animosidade e intolerância cada vez mais escrachado, que conta com populares representantes no parlamento brasileiro.
São parlamentares que, em nome da (sua) família, não poupam esforços para que exista uma fórmula única de amar e reproduzir-se, constituída por um casal heterossexual, com um pai e chefe de família provedor e uma mãe e esposa doméstica e submissa, que jamais opte por interromper uma gestação. Eles não são os militares de outrora, são civis, em sua maioria homens, quase todos brancos, boa parte dizendo-se religiosos, que vociferam de modo bem pouco elegante contra as feministas e as liberdades das diversas identidades de gênero.
Pois é também daí que vem o outro lado da minha personalidade bipolar: vejo isso com uma ponta de otimismo. Como assim, Diana? Julgo que esses discursos são sintomáticos de um avanço perceptível (e acho que irreversível) na sociedade que eles estão tentando conter. Considero que aquilo que mais se teme é sempre algo que está bem próximo e, portanto, ameaçador. Esse é o caso da existência de pelo menos um parlamentar abertamente gay, da necessidade de criar um banheiro feminino no Senado, 55 anos após sua inauguração, e da possibilidade real de uma deputada amamentando no plenário.
Há menos inquietudes em um mundo aparentemente povoado de iguais, onde os diferentes sejam suprimidos ou socialmente invisíveis. Só que tal homogeneização inexiste na condição humana, e sempre que foi tentada custou muitas vidas. As experiências são conhecidas sob a forma de ditaduras, nazismo, fascismo, stalinismo e terrorismo fundamentalista. Ser de um único jeito não é obedecer ou desobedecer a natureza ou a fé, é apenas o exercício de poder dos que têm um modo de viver sobre os outros. A natureza e os deuses são muito mais tolerantes que seus supostos paladinos.A presença daqueles que mostram outras formas possíveis de organizar-se psiquicamente produz o pânico da contaminação, pois, por dentro, temos mais dúvidas do que certezas, o que nos deixaria com as “defesas baixas”. Aliás, tanta urgência em cornetear sua indiscutível virilidade e supremacia de gênero costuma deixar as orelhas mais refinadas em pé. Quem está duvidando?
Outrora, bastava dizer que não se é “bicha” ou “sapatona”, simples assim, dois tipos, um certo e outro errado. Só que acabou a simplificação e a polaridade: entre as variantes, há aqueles que se diferenciam por colocar em questão a identidade sexual feminina ou masculina que lhes foi atribuída ao nascer, sentem-se mais próximos do gênero dito seu oposto ou mais cômodos numa zona intermediária, sem definições claras. Há outros que não têm grandes questões com isso, navegam tranquilos com a virilidade ou a feminilidade que se espera que demonstrem, apenas amam aos de seu mesmo gênero. As categorias ficaram confusas, o preconceituoso sente-se desorientado.
O médico de aparência viril que você está consultando pode ser casado com outro homem. O melhor amigo de seu filho, bom aluno, pode ser fruto da união de duas mulheres. Uma mulher que sente-se masculina, usa nome social de homem, toma hormônios e veste-se como tal, pode demonstrar suficiente força física e preparo para tentar ingressar como homem nas forças armadas. Sua esposa confinada ao lar pode encher-se de dúvidas se outras mulheres provarem que é possível ter filhos ótimos, ao mesmo tempo em que preservam uma vida própria e um trabalho no qual se realizam. Só demonizando e calando tudo isso para evitar o abalo que a revolução de costumes está produzindo na sociedade.
Meu incurável otimismo me diz que podem até tentar submergir-nos em algum período de trevas, mas até os ilustres parlamentares pertencem a um gênero cada vez mais variado e sutil. Quanto às conquistas das feministas, talvez alguns dos senhores políticos não se agradem disso, mas garanto que suas filhas gostam.