O burrinho do presépio é o personagem que mais me comove na história encantada da noite eterna, sem qualquer menosprezo às criaturas humanas e divinas que compõem o cenário tradicional. Conta a lenda que ele carregou a mãe e, depois, deitou-se ao lado do berço de palha para aquecer o casal e o filho recém-nascido. Não duvido: os asnos costumam ser doces e fiéis aos seus donos, ainda que venham sendo explorados como animais de carga e montaria desde os tempos pré-históricos.
Pois exatamente nesta antevéspera de Natal caiu-me nas mãos — não do céu, mas da estante de uma livraria e pela intervenção da sua proprietária — uma raridade literária: Platero y Yo, de Juan Ramon Jimenez. Em castelhano, como o havia lido pela primeira vez quando frequentei aulas de espanhol no Instituto de Cultura Hispânica da PUC. É um exemplar de capa dura, amarelado pelo tempo, editado e impresso em Madri, com o carimbo do antigo proprietário e uma curiosa dedicatória datada de 1962, em tinta vermelha: “Buscaste, ansioso e desesperado, a imagem não retocada do teu eu. Contempla-te honestamente e procura a transcendência da realidade”.
Mais abaixo, com a mesma caligrafia, o mesmo escriba deixou registrada em francês a célebre lição de Saint-Exupéry: “On ne voit bien qu’avec le cœur. L’essentiel est invisible pour les yeux”. Sim, senhoras e senhores, a gente não vê bem senão com o coração. O essencial é (quase sempre) invisível para os olhos.
Fiquei feliz com o livrinho usado — ou melhor, livrinho que já fez companhia a alguém. Nele viajei novamente com Platero e seu inspirado poeta pelos caminhos da Andaluzia, que tive a felicidade de conhecer por conta de meu ofício, na Copa de 1982. É curioso como os ciclos se fecham: conheci a prosa poética de Ramon Jimenez justamente no período de preparação para aquele trabalho.
Numa daquelas aulas, inclusive, ousei imitar desafinadamente o italiano Sérgio Endrigo na interpretação deste verdadeiro hino à amizade do cubano José Martí, que deixo como mensagem natalina aos leitores e leitoras: “Cultivo una rosa blanca/ en junio como en enero/ para el amigo sincero/ que me da su mano franca./ Y para el cruel que me arranca/ el corazón con que vivo/ cardo ni ortiga cultivo/ cultivo una rosa blanca”.