Faço parte do fã-clube de Isabel Allende desde que li Eva Luna, uma espécie de Sherazade sul-americana, que ilude o seu trágico destino contando histórias tão fantásticas quanto reais. Mais do que isso, Eva Luna é o protótipo da mulher guerreira, que enfrenta com bravura as adversidades e a opressão histórica da sociedade patriarcal às fêmeas da espécie humana. Eva Luna é um pouco a própria Isabel, escritora competente, corajosa e extremamente criativa que, ao escrever A Casa dos Espíritos, conquistou a titularidade no primeiro time de fabuladores latino-americanos.
Pois em recente entrevista à AFP para anunciar o lançamento para novembro de um livro sobre feminismo, a escritora chilena fez previsões interessantes e lúcidas sobre o mundo pós-pandemia, além de uma síntese preciosa dos ensinamentos que a doença poderá deixar para a humanidade. Faço questão de reproduzir aqui algumas afirmações que me chamaram a atenção. “Tudo será reinterpretado. A pandemia vai produzir uma onda, uma avalanche de novas interpretações da realidade”, previu, com a ousadia dos ficcionistas.
Ao ser questionada sobre o que aprendeu com a pandemia, Isabel Allende, com franqueza característica de suas personagens contundentes, destacou o desapego: “O que a pandemia me ensinou é a soltar coisas, a me dar conta do pouco que preciso. Não preciso comprar, não preciso de mais roupas, não preciso ir a lugar nenhum, viajar. Me parece que tenho demais. Vejo ao meu redor e me pergunto para que tudo isso. Para que preciso de mais de dois pratos?”.
Saindo do individual para o coletivo, ela pensa que a atual excepcionalidade abre espaço para um mundo mais fraterno. “A pandemia também nos ensinou que somos uma só família. O que se passa com um ser humano em Wuhan se passa com o planeta, se passa com todos nós.” A escritora lembrou também que muita gente não deseja voltar ao que era considerado normal e manifesta sua esperança de ver o mundo governando de forma mais compartilhada por homens e mulheres.
Sei que o debate de gênero sempre gera desconforto, mas não há como ignorar que algumas mulheres governantes se destacaram positivamente na liderança de seus países durante o enfrentamento da pandemia, casos notórios da Nova Zelândia, que praticamente já voltou à normalidade e não tem mais casos da doença, e da Alemanha, que deu exemplo de disciplina e eficiência na Europa. Em contrapartida, como podemos constatar tristemente, valentões e negacionistas vêm fracassando rotundamente e agravando o sofrimento de seus povos.
Desapego, fraternidade e um olhar mais suave sobre a humanidade: que as previsões de minha escritora favorita não sejam apenas mais uma ficção.