O presente anda tão amargo que estamos preferindo nos refugiar no passado a planejar o futuro. Pelas postagens nas redes sociais, é fácil de perceber que muita gente está buscando alento no pretérito mais-que-perfeito de sua existência: os momentos prazerosos com a família, as traquinagens da infância, as loucuras da juventude, os amigos, a conquista do time preferido, formaturas, festas, tudo o que deixou alguma saudade digna de ser lembrada.
Sempre fizemos isso – dirão os saudosistas assumidos. Pode ser, mas me parece que a quarentena e o isolamento rebobinaram a fita das boas lembranças – imagem tecnológica que por si só, reconheço, já é um atestado de antiguidade. Mas é inevitável: coisas que estavam mumificadas no fundo do nosso cérebro ressurgem do nada.
Outro dia observava minha mulher fazendo pão caseiro e percebi que ela usava uma espécie de relógio de corda para controlar o tempo de cozimento. Trata-se, na verdade, de um temporizador manual para cozinha. Mas o princípio é o mesmo dos antigos relógios, que sempre me intrigaram pela precisão dos tique-taques.
Comentei com ela a semelhança e logo a palavra corda puxou – literalmente – outra imagem do passado: a corda do poço. Todas as casas da minha infância tinham pátio e todos os pátios tinham poço. Até o meu primeiro colégio, na periferia desta cidade dos meus andares, tinha um poço de tijolos, com balde e roldana, para matar a sede da criançada. Também ali havia um engenho: o balde, geralmente de alumínio ou latão, tinha um peso preso na borda para que virasse ao tocar na água e pudesse ser trazido de volta com o líquido desejado. A velha roldana, impulsionada por manivela, emitia um ruído de roda de carreta, acompanhado pelo gotejar da água no fundo do poço, compondo uma das mais belas e inesquecíveis canções da infância.
Como ensinou Machado de Assis, palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo ou uma revolução. Falei na roda de carreta e já se apresentou na minha frente um velho barbudo – naquela época, todos os adultos eram velhos _ que trazia rapadura-puxa e melado de Santo Antônio da Patrulha. Ele estacionava o seu precário veículo nas cercanias da vila, colocava os bois na soga e ficava esperando a clientela. Soga, como sabem os mais sábios, tem a ver com corda.
Só paro por aqui porque o alarme do temporizador disparou e o pão está saindo quentinho do forno. O presente também pode ser doce.