Usávamos muito esta palavra e seus derivados na década de 70 dos anos 1900. Não sei como o termo entrou na linguagem dos jovens estudantes de então, mas bastava alguém cometer uma gafe para os companheiros de turma gritarem unissonamente:
– Boçalizou!
Pobres de nós! Vamos mesmo ter que entregar o cargo a um deles, como preveem a nossa Constituição e o processo democrático.
Sim, o verbo também se popularizou naqueles tempos de chumbo: tu boçalizas, ele boçaliza... Eu, nunca, evidentemente. Talvez fosse o desabafo possível. Além disso, chamar alguém de boçal era sempre menos ofensivo do que chamar de reacionário. Aí, sim, dava briga. Com o tempo, os dois adjetivos caíram no vale profundo do esquecimento.
Até esta semana, quando os pré-candidatos à Presidência da República participaram de um debate em Brasília e um dos pretendentes ao cargo mais importante do país mirou na pleura de seu concorrente mais bem colocado nas pesquisas eleitorais:
– Vão entregar um cargo desses a um boçal despreparado?
Pobres de nós! Vamos mesmo ter que entregar o cargo a um deles, como preveem a nossa Constituição e o processo democrático. Mas será que teremos de entregá-lo a pessoas sem compostura, que se agridem em vez de dialogar, que tentam se afirmar desqualificando adversários políticos?
Quando jovens, empregávamos esses termos por deboche e desconhecimento. Jamais imaginamos, por exemplo, que a palavra boçal tinha uma origem deprimente. Veio do Brasil de antigamente e era usada para designar o escravo africano que não sabia falar português. Posteriormente, popularizou-se para rotular qualquer pessoa de pouca instrução. Ainda hoje, no dicionário, tem o sentido de rude, grosseiro, imbecil, ignorante.
Por isso, a ressurreição da velha ofensa no recente debate me causou essa estranheza. Hoje, até mais do que antes, soa como grosseria chamar alguém de boçal, mesmo que esse alguém até possa merecer a aviltante qualificação. Ainda vou pesquisar muito antes de decidir para quem vai o meu voto, mas um dos critérios eliminatórios será a civilidade do pretendente.
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A ministra Cármen Lúcia fez uma bela comparação entre as fake news que prosperam na internet e os antigos mascates de praça pública, que convenciam curiosos a comprar suas plantas milagrosas. Falando no seminário 30 Anos sem Censura, em Brasília, a presidente do Supremo chegou a imitar um desses vendedores de ilusões para exemplificar a sua tese: "Aproxime-se, freguês amigo, aqui tem uma planta que não deixa cair cabelo, não deixa cair alegria, não deixa cair sua esperança".
Dá mesmo vontade de comprar, não é mesmo? Por isso as notícias falsas têm tanta audiência e aceitação. Como concluiu a ministra, alguém diz o que você queria ouvir. E o pior é que a internet e as redes sociais potencializaram a farsa, facilitando sua difusão pelo compartilhamento ingênuo ou maldoso.
Como se dizia antigamente, boçalizaram a tecnologia.