Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos. Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora
Em nossa turma de basquete temos um colega que é conhecido simplesmente como Carioca: "Vai lá, Carioca! Grande cesta, Carioca!". O que me inspira uma melancólica reflexão. Se eu for ao Rio de Janeiro e me convidarem para jogar basquete (altamente improvável), ninguém dirá: "Vai lá, Porto-Alegrense! Grande cesta, Porto-Alegrense!". Claro que minhas cestas são raridade: como o cometa Halley, elas só surgem de 76 em 76 anos. Mas mesmo assim ninguém de nossa cidade seria chamado de "Porto-Alegrense" por esse Brasil afora. "Gaúcho", sim. Existe uma identidade gaúcha, solidamente apoiada nas tradições de nosso Estado. Todo mundo sabe quem é o gaúcho. E, em termos de cidades, todo mundo sabe quem é o paulista, por exemplo. Mas quem é o porto-alegrense?
Como nativo de Porto Alegre, confesso que não tenho uma resposta satisfatória para isto. A dificuldade maior é caracterizar a cultura porto-alegrense. A cultura do Rio de Janeiro inclui a praia, o bar, a favela: a cultura de São Paulo inclui o executivo, a avenida Paulista, a competição. E a cultura porto-alegrense? Aí vem a dificuldade. O que caracteriza, exatamente, a cidade? A Rua da Praia? Todo mundo sabe que a Rua da Praia já não é a mesma. Os crepúsculos, quem sabe? Uma vez o escritor e jornalista carioca Marques Rebelo veio a Porto Alegre. Mario Quintana ("Céus de Porto Alegre/ como farei para levar-vos para o céu?"), de cicerone, levou-o ao morro Santa Teresa e mostrou-lhe um pôr-do-sol particularmente arrebatador. Marques Rebelo não dizia nada. Quando voltou ao Rio, escreveu: "Eles não têm nada para mostrar, então ficam falando daqueles crepúsculos."
Mas temos, sim, uma identidade porto-alegrense. Só que ela não se revela facilmente. O porto-alegrense se caracteriza não exatamente pelo que é, mas pelos lugares aonde vai (o Brique da Redenção, os parques, a Usina do Gasômetro), pelo jeito que fala, e que foi codificado pelo Luís Augusto Fischer em seu dicionário. Em suma, é uma identidade que tem de ser procurada: nas ruas da Cidade Baixa, nos bares da avenida Goethe, nos restaurantes de rodízio, na Vila do IAPI, entre muitos outros lugares. O porto-alegrense é um agente secreto de sua cidade, alguém que, apesar de Marques Rebelo, continua, sim, admirando o sol a se pôr sobre o Guaíba.
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