Houve um tempo em que chamar um jogador de peladeiro era depreciá-lo com ênfase e sem perdão. Na pior acepção do termo, seria o jogador com o qual um treinador não pode contar porque joga só para ele, é incapaz de cumprir função tática por desdenhá-la ou não alcançar intelectualmente o que lhe fosse pedido.
Reconhecia-se no peladeiro muita qualidade técnica, insuficiente, porém, para fazer valer a ele um elogio sem reparos. Um exemplo clássico era Mário Sérgio. Desde seu começo, o meia-ponta jogava como queria, recusava-se a obedecer o que lhe fosse determinado pelo treinador e assim vagou por Vitória, Botafogo, Fluminense e Rosario Central. Sob a chancela de Falcão, Mário Sérgio foi contratado pelo Inter do degredo na Argentina em 1979 e passou a ser comandado por Ênio Andrade. O resto, a história conta.
O velho Ênio fez o inteligentíssimo jogador concluir por si mesmo sobre a necessidade de jogar para o time, estabelecer uma geografia em que atuasse produtivamente e mudasse de patamar na carreira. Mário Sérgio virou personagem central do Inter tricampeão brasileiro e, mais tarde, do Grêmio campeão mundial. Nunca deixou de referir carinhosamente a importância de Ênio para a última metade de sua vitoriosa carreira.
Mais tarde, como comentarista ou treinador, virou um profissional rigoroso na questão tática, mas capaz de perceber quem deveria escapar à severidade das funções previamente estabelecidas. Pergunte a Rivaldo, o penta, sobre a importância de ter sido treinado por Mário Sérgio no Corinthians.
Os tempos são outros. É tão ferrenha a orientação tática dos treinadores que resta pouco espaço para o talento individual. Os mais sábios técnicos potencializam seus jogadores de exceção, protegem-no com um sistema de jogo a beneficiá-los. No entanto, nem eles estão livres de cumprir algum tipo de função sem a bola. Tanto trabalho coletivo robotizou a imensa maioria dos jogadores de futebol e inibiu a formação de novos e decisivos talentos.
É neste contexto de excesso de sistematização que o termo peladeiro deixa de ser pejorativo e vira elogio. O talentoso que excede obriga o treinador a liberá-lo de geografias restritas. Mbappé, por exemplo, tem o corredor esquerdo como ponto de partida, mas anda por onde quiser atrás da bola na seleção francesa e no PSG. Messi, acima de todos, recebe do seu treinador a função de não ter nenhuma função que não seja a de decidir jogos e campeonatos, procurando o espaço vazio e se apresentando como opção ao companheiro detentor da bola onde quer que seja.
O peladeiro gremista
Dados os exemplos do mundo dos fora de série, quero direcionar a coluna a um personagem local. Um venezuelano que chegou para o Grêmio cercado de desconfianças pelo tamanho, pelo extracampo, pelo rebaixamento do Santos, pelo cabelo pintado, mil coisas. Soteldo, em dois jogos, mostrou um comprometimento que supera qualquer expectativa dos gremistas. Sem a bola, foi visto em dois jogos a ajudar Reinaldo na marcação. Com a bola, no jogo de estreia, mal saiu do corredor esquerdo que lhe foi destinado, mostrou-se o melhor jogador do Grêmio na derrota para o Caxias.
Renato Portaluppi e Soteldo, a partir do que viram no Centenário, decidiram em conjunto que o corredor esquerdo lhe aprisionaria se não houvesse porta de saída para o restante do campo ofensivo. Então, na Arena, Soteldo foi de longe o melhor jogador da goleada sobre o São José porque teve liberdade para perseguir a bola. Ao não se fixar no corredor esquerdo, onde fez a jogada do gol de JP Galvão, o venezuelano variou de marcador e conseguiu, com isso, vantagem pessoal contra todos os que tentaram marcá-lo.
No sentido mais positivo da palavra, Soteldo ganhou o direito de ser um peladeiro. Ao contrário da definição original, não o peladeiro que joga para si só. Soteldo agregou qualidade geral ao time, deu assistência e fez gol. Saiu aplaudido antes do fim do jogo, já tinha sofrido sete faltas, uma delas de alto risco de lesão, não tinha mais por que estar em campo. Na soma dos dois jogos, sofreu 12 faltas.
No sentido mais positivo da palavra, Soteldo ganhou o direito de ser um peladeiro
MAURÍCIO SARAIVA
sobre o atacante gremista
Quanto mais se destaque neste início de temporada, mais marcado será. Haverá um a marcá-lo para ser driblado e, logo atrás deste, outro para tentar desarmá-lo. Alguns tentarão fazê-lo jogando na bola. Outros tantos simplificarão para a sequência de faltas, poucos e perigosos se arriscarão a cometer faltas imprudentes ou desleais.
A tudo Soteldo precisará ignorar para ser o que sinaliza que será para o Grêmio em 2024. Renato pediu atenção à arbitragem quanto ao tipo de falta que seu jogador já está sofrendo e muito mais sofrerá. Tem razão. Até agora, Soteldo não simulou nada. Jogou na vertical, quando foi parado o artifício era empurrão, puxão ou pontapé. Quando não foi parado, o Grêmio teve gol ou chance de marcar.
Soteldo não vai estar em campo neste domingo (27) no Bento Freitas contra um preocupante Brasil-Pel. O jogador da seleção da Venezuela jogou duas partidas em alto nível e apanhou, é hora de aliviar com gelo ou passeio os hematomas destes mais de 180 minutos em campo. É interessante ter na aldeia alguém que chega para subverter este conceito preconceituoso do peladeiro.
Esqueça a versão em que chamar alguém de peladeiro era ofendê-lo gravemente. O camisa 7 do Grêmio reinventa por aqui o conceito de quem corre pelo campo se apresentando para receber a bola onde ela esteja. Bom para ele, bom para o futebol.