Na vitória de extrema autoridade técnica do Flamengo sobre o Grêmio, quarta-feira passada, houve destaques individuais no time carioca muito fáceis de identificar. Vítor Hugo, Thiago Maia, Bruno Henrique, Gabigol, De Arrascaeta... mesmo Everton Ribeiro, ainda que abaixo do seu padrão, poderia ser citado por flamenguistas empolgados.
Porém, há jogadores com protagonismo de forma mais discreta. Deve-se prestar atenção para detectar sua enorme relevância e o quanto contribuíram para o resultado coletivo final.
Não estou vendendo nesta coluna a pretensão de ser capaz de ver o jogo que ninguém vê, de ser o cara que descobriu a pedra de toque do futebol ou o lado oculto da Lua. Antes, prefiro sugerir a quem me lê que fique atento, no próximo jogo que acompanhe, para perceber onde está, se está, a figura fundamental daquele que poderia ser chamado de jogador tático.
No Flamengo do 2x0 na Arena, a aula de praticar futebol coletivo com o olhar tático do jogo foi dada pelo jogador mais velho em campo. Do alto dos seus 37 anos, Filipe Luís pôs no bolso todo jogador gremista que circulou em seu território. Nenhum se criou; o lateral-esquerdo do Flamengo gerenciou sua área com amplos poderes de tempo e espaço.
O que diferencia Filipe Luís da imensa maioria dos jogadores de futebol é esta visão espacial de perceber antes dos outros quem o cerca como rede de apoio para o passe. Raramente o passe dele sai em paralelo ao gol adversário. É difícil que Filipe Luís apoie rente à linha lateral, ele prefere enveredar para dentro e gerar superioridade numérica no meio.
Foi assim o jogo inteiro contra o Grêmio, tem sido assim na sua carreira bem-sucedida. O jogador tático tem a qualidade de jogar e fazer jogar. Não significa que tenha técnica especialmente refinada para fazer o que faz.
Basta uma boa técnica e um senso de risco muito preciso na hora de passar a bola. Filipe Luís não rifa passe, tampouco se esquiva de tentar o mais vertical. Joga em aproximação, é raro que lance bola longa em grandes viradas de jogo. Hoje em dia, nem é titular no Flamengo, Ayrton Lucas tem jogado tão bem que já foi até convocado para a Seleção.
Em 2018, Filipe Luís substituiu Marcelo quando este se machucou na Copa da Rússia, foi muito seguro, voltou para o banco contra a Bélgica, jogo em que o Brasil foi eliminado. Em 2019, com Jorge Jesus, teve um papel fundamental na segurança defensiva daquele time encantado, mas não se furtava de apoiar na hora em que sua presença se fazia necessária além da linha divisória.
De lá para cá, enfrentou lesões, o tempo passou, foi preciso passar a jogar no atalho para continuar ativo. Filipe Luís já disse que não jogará além de 2023 se não for no próprio Flamengo. Tenho certeza de que será treinador no médio prazo. No máximo. E dos bons.
Desde os anos 1970, quando comecei a ver futebol ainda na segunda idade da infância, vi muito jogador tático a ajudar sua equipe para vitórias e títulos. Há vezes em que o jogador tático é também um craque, caso de Paulo César Carpeggiani. Na Academia do Palmeiras, o volante Dudu era um grande jogador tático a sustentar seu parceiro de setor Ademir da Guia.
No Flamengo do início dos anos 1980, Lico cumpria esta função de dar harmonia ao conjunto repleto de estrelas daquele time campeão da Libertadores e do mundo. No Grêmio recente bem-sucedido de Renato Portaluppi, Maicon era o jogador tático. Distribuía passes e ordens como se treinador fosse, ocupava a geografia certa para ler o jogo. Muito raramente veremos jogador tático atacante, a quem cabe essencialmente é fazer gol ou para o gol dar assistência.
Jogadores táticos costumam atuar na defesa ou no meio-campo. Se você que me lê tiver interesse em algo além da vitória ou derrota do seu time — e se tiver interesse só nisso está tudo certo, ninguém cassará seu direito —, repare em Inter x Cuiabá ou Goiás x Grêmio se no seu time existe o jogador tático. Entre colorados, o papel pode ser destinado a Aránguiz.
Entre gremistas, quem tem mais clara esta qualidade está lesionado há algum tempo. O retorno de Pepê fará enorme bem ao time de Renato Portaluppi, talvez aconteça em agosto.
E se você tiver mesmo interesse em ver em ação o jogador tático que não seja do Inter ou do Grêmio, veja Atlético MG x Flamengo às 21h do sábado e confira se Filipe Luís está escalado.
Mas se nada disso lhe interessa, sinta-se bem acompanhado por um dos maiores frasistas que a imprensa gaúcha produziu. É atribuída a Cláudio Cabral, que hoje vê futebol do Céu, uma frase maravilhosa sobre o jogador que se destaca por ser excelente jogando sem a bola.
O tal que está titular porque supostamente cumpre função tática, mesmo que a bola não seja sua melhor amiga. Dizia Cabral com sua inconfundível voz de malandro dos anos 40: "olha aqui, ó... sem a bola, eu jogo tanto quanto o Pelé".