Quando terminou a série de cobranças de pênaltis de Brasil e Canadá, e o sonho de medalha ruiu, Marta reuniu as companheiras ainda no campo e discursou longa e emocionadamente. É certo que falava da sua despedida, tinha lágrimas nos olhos. Era a materialização do fim de ciclo da melhor jogadora de futebol de todos os tempos até hoje.
Sob os olhos tristes de brasileiros e brasileiras pela eliminação precoce — o Canadá não é melhor time do que o Brasil, que bem poderia cair contra Holanda ou Estados Unidos na fase seguinte, mas tinha qualidade para chegar lá —, a cena significava a necessidade de que o trabalho da treinadora Pia Sundhage não seja interrompido, em busca da substituta da Rainha. Aliás, não só dela.
A volante Formiga, 43 anos, também não conseguirá mais entregar seu futebol de qualidade de marcação e passe à frente das zagueiras. É o inevitável passar do tempo, a sucessão faz parte da vida esportiva de forma ainda mais dolorida porque, ao contrário de outras profissões, onde a idade não impõe limite tão jovem, o esporte de alto rendimento requer uma competitividade física que estabelece uma fronteira irreversível.
Marta e Formiga foram jogadoras espetaculares, mas a fisiologia do corpo não negocia. Já nesta Olimpíada, ambas entregaram o que puderam. Comparado ao que já desempenharam, foi bem menos, o que em nada diminui toda excelência das suas carreiras. Foram precursoras, inspiradoras, merecerão sempre o aplauso de quem as encontre no aeroporto, na praia, no boteco ou onde for.
O que o Brasil não pode é rotular de perdedoras as jogadoras que cercavam as duas gigantes em Tóquio. Há muito por desenvolver, há personagens novos a agregar e muitas das jogadoras que estiveram no Japão merecerão carinho e confiança para que, mais maduras e competentes, estejam na França em 2024.
Em paralelo à manutenção da base, a treinadora sueca do Brasil precisará garimpar protagonistas que substituam Marta e Formiga. Podem estar já no elenco que foi eliminado pelo Canadá, mas também é possível que ainda nem tenham vestido a camisa da Seleção e surjam de forma fulminante nos próximos anos.
O time brasileiro tem uma ideia coletiva ousada e propositiva. Transformou a goleira canadense em melhor jogadora no campo, antes mesmo de pegar dois pênaltis. O Brasil melhorou defensivamente, joga com velocidade e movimentação e, ainda assim, parou diante de uma seleção que lhe era inferior. São pedras no caminho da evolução. Corrigir rumos faz parte do processo, mas a condutora deve ser a mesma.
A CBF foi audaciosa ao contratar uma treinadora estrangeira que veio não por estrangeira e sim por vitoriosa. Pia tem medalha dourada com os Estados Unidos e prateada com a seleção do seu país. Competentíssima, parece identificada com os costumes brasileiros e se diverte em viver a cultura do lugar em que trabalha. No Rio Grande do Sul, provou chimarrão. Nestas Olimpíadas, tocou música de Alceu Valença no piano.
Esforça-se para se fazer entender em português. Sua postura é de quem veio ensinar, sim, mas também aprender com as pessoas que a ela serão subordinadas. Não se coloca em situação de diva, tampouco força a tentativa de parecer uma nativa. Pia Sundhage se insere na realidade em que vive quando sai a trabalhar numa terra que não a sua. Por isso tem o respeito, a admiração e o acolhimento das treinadoras e dos treinadores do futebol feminino, por isso conduz com leveza a gestão do grupo de jogadoras, o que não a impede de, por exemplo, abrir mão de Cristiane para estas Olimpíadas por razões que só ela sabe.
O futebol feminino sempre contou com o carisma de Marta para se fazer notar pelo público apaixonado pelo esporte no Brasil. Agora, não haverá mais esta âncora e a posição decepcionante nas Olimpíadas será um desafio a mais para que não haja perda do espaço que não para de crescer. Que vejamos todos com olhos acolhedores e promissores o que o futebol feminino do Brasil pode entregar em Paris daqui a dois anos. E, antes, não vamos deixar que se perca pelo caminho o que já foi construído.
Não se trata de achar outra fora-de-série como foi Marta. Não há certeza de que ela exista. Porém, encontrar protagonistas para o time e coadjuvantes de qualidade para o elenco deve ser missão 001 da ótima treinadora sueca, que tem contrato com a CBF para comandar a Seleção na França em 2024.