Havíamos sido apresentados durante um evento. Ele sabia que eu era escritora, eu não sabia nada dele e fim da história. Até que, dois dias depois, ele me encontrou sozinha e se aproximou. Disse, num tom muito sério, voz preocupada: "Quero aproveitar este momento pra te pedir um conselho".
Meu Deus. Ok. Peça.
"O que você diria para o pai de uma menina que desde os cinco anos de idade, até hoje, aos 24..."
Suspirei. A menina seria viciada em crack? Não se identificava com o sexo com que havia nascido? Era abusada por algum familiar? Teria algum distúrbio, alguma doença, algo que precisasse de um acompanhamento psicanalítico? Qual seria o seu segredo, a sua dor, o que ele estaria prestes a me confidenciar?
"...que até hoje, aos 24, não faz outra coisa na vida a não ser ler?"
Olhei bem para o rosto dele e aguardei a gargalhada que denunciaria a piada. Não veio. Ele estava falando sério. Então iniciei meu questionário.
"Ela dorme à noite e se alimenta bem durante as refeições?"
"Sim."
"Ela estuda ou trabalha?"
"Sim."
"Ela namora, tem amigos, vida social?"
"Sim."
"Então, desculpe, não entendi."
Quantos pais, hoje, subiriam 300 degraus de joelhos pela graça de ter um filho que adorasse ler? Eles existem, os leitores jovens. Mas não são muitos, não tantos quanto precisaríamos para manter defensores da ditadura longe das intenções de voto, para que não se fizesse confusão entre pedofilia e performance, para que não existisse tanta gente sem saber escrever um bilhete decente, para que não houvesse tanta tacanhice e dificuldade de transcendência. Leitura está diretamente associada a evolução, a desenvolvimento, a sabedoria e amplitude de ideias. Sem leitura, resta o confinamento, a estreiteza, o escuro. Viver neste buraco gera medo e o medo nos faz segurar qualquer corda que nos alcancem. Viramos presas fáceis de oportunistas.
"Que pai sortudo você é", disse a ele. "Vício em leitura é virtude."
"Sinceramente, acho um exagero", ele respondeu, e se afastou. Não tocou mais no assunto e nunca mais o vi, mas espero que seja surpreendido pelos textos impecáveis, pelas conversas inteligentes, pelos projetos audaciosos, pelo patrimônio intelectual que sua filha começa a conquistar.
Pais sortudos, não pirem. Não existe "ler demais". Preocupem-se com o "ler de menos", essa epidemia às avessas que nos afunda e impede que sejamos um povo mais aberto e interessante. Em tempo: a Feira do Livro de Porto Alegre está começando. Neste ano, não irei autografar, mas a gente poderá se cruzar na praça, em busca de novos títulos nas barracas. Pois o que eu já li e o que você já leu ainda não é suficiente, e nunca será.