O calendário de 2023 já terminou, mas as surpresas continuam, como o superávit recorde da balança comercial do ano passado informado na sexta-feira (5). Uma recessão nos Estados Unidos era aposta certa de 9 entre 10 economistas em 2022, e não se confirmou. É uma das origens dos erros, das surpresas e dos mistérios na economia que marcaram o último período. Para alguns economistas, porém, não precisa ser Sherlock Holmes para decifrar os fenômenos dos últimos meses. Não chega a ser "elementar", mas com o diagnóstico certo, fica mais fácil de entender o passado e projetar o futuro. Um deles é Paulo Gala, economista-chefe do Banco Master, que resume assim o momento:
— A situação brasileira é bastante boa.
Um pouco graças aos últimos anos, um pouco apesar disso, um pouco graças aos últimos meses, um pouco apesar disso.
2023 deixou surpresas e enigmas na economia?
Não há muito enigma. A surpresa foi o comportamento das commodities e do agro. Todo o acréscimo veio de soja, produção de petróleo e mineração. O Brasil teve uma produção exuberante, que apareceu como PIB maior. O mistério é como os economistas erram tanto (risos).
Um dos motivos das surpresas com o PIB não é o fato de o agro ser pouco monitorado no mercado?
Há baixa capacidade de previsão da economia. Os sistemas são muito complexos. Sobre o agro, é difícil monitorar melhor, porque enquanto não sai o dado do IBGE, não há muito a fazer. Um dos erros de previsão veio daí. Mas a produção de petróleo também foi uma surpresa. Vamos fechar o ano com 4 milhões de barris diários, quando produzíamos 1 milhão em 202o. Já estamos entre os 10 maiores do mundo, é um resultado impressionante. E tem a exuberância das commodities, agora com o gás (natural), que deve se estender para 2024.
Considero perfeitamente esperado que o desemprego no Brasil despencasse. Enigma seria uma economia que cresce e não gera emprego.
Um mistério local é o fato de a inflação cair mesmo com alta no emprego?
Também não vejo mistério. O Brasil cresceu 10% desde o vale da pandemia. Foram 4% em 2021, 3% em 2022 e 3% em 2023. Uma economia que cresce 10% emprega muita gente. Considero perfeitamente esperado que o desemprego no Brasil despencasse. Enigma seria uma economia que cresce e não gera emprego. Ao menos, não partindo de um desemprego de 14%, o maior nos últimos 30 anos. O mercado de trabalho estava ocioso. Agora, se o desemprego cair para 5%, vai ter pressão de salários na inflação. É mais fácil cair de 14% para 7% do que de 7% para cinco.
Um dos enigmas, o da desinflação sem recessão, é internacional...
É, fala-se muito em 'desinflação imaculada', sem recessão. Mas parece confirmar que a inflação foi um choque transitório da pandemia, então é mais ou menos esperável que passasse. Depende um pouco do diagnóstico. Quem atribui a inflação à desestruturação das cadeias globais provocada pela covid, ou seja, era de oferta, não de demanda, sabe que não precisaria ter recessão para fazer o pico de preços passar. Em 2023, a inflação ainda foi mais de choque de oferta do que demanda, se está caindo mesmo com mercado de trabalho forte, nos Estados Unidos e aqui.
´´E é importante ponderar que não estamos com a batalha da inflação completamente vencida. A última milha é importante.
É um diagnóstico consensual? Se fosse, não seria preciso manter juro em "nível contracionista", certo?
Ainda não. Mas sobre juro, o que importa é o nível final, não a velocidade. Não importa tanto se os cortes vão se acelerar para 0,75 ponto percentual, mas se vão terminar o ano em 8%, 9% ou 10%. E é importante ponderar que não estamos com a batalha da inflação completamente vencida. A última milha é importante.
A questão fiscal vai dominar a economia em 2024?
Sim, vai continuar dominando, assim como o nível da Selic no final do ano. Acredito que vá terminar em 9%, mas tem espaço para defender 10% e também há argumentos para falar em 8%. Essa questão está ligada, obviamente, ao que vai ocorrer com o juro nos EUA. Hoje, 70% do mercado espera o primeiro corte para março, mas começa a crescer a visão de que deve ser só em maio. Pessoalmente, considero maio mais provável.
Caindo lá, nos ajuda aqui, certo?
Muito. O Brasil resistiu bem ao cenário de choque nos EUA. Quando lá cai, a vida aqui é muito mais fácil.
Qual sua expectativa sobre a meta de déficit zero?
O importante é que existem a meta e o compromisso do ministro da Fazenda. Uma coisa é ele vir a público dizer que a meta é zero e que está se esforçando para alcançá-la. Outra é dizer 'não temos compromisso com meta zero nem com déficit zero'. Ele tem uma equipe empenhada em atingir a meta.
Mas basta olhar as notas de rating (análise de crédito) e os CDS (risco país implícito em títulos de proteção contra calote) na mínima para ver que a situação brasileira é bastante boa.
Se mercado já cravou projeção de déficit em 0,8% do PIB, porque exige zero?
O mercado não exige, precifica. Avalia cenários e estima a probabilidade. Se não tiver déficit, é melhor para a economia. Se for ruim, o prêmio é maior, dá mais retorno. Depois, não há expectativa de que o resultado seja déficit zero no final de 2024. Se for de O,5%, ou cerca de R$ 50 bilhões, será considerado razoável. Mas basta olhar as notas de rating (análise de crédito) e os CDS (risco país implícito em títulos de proteção contra calote) na mínima para ver que a situação brasileira é bastante boa.
Acredita que Haddad vai conseguir manter a meta quando começarem as pressões para evitar cortes nas despesas por contingenciamento?
É visível que o plano é manter o fiscal sob controle para poder reduzir o juro. Com a equipe econômica que está aí, não vejo como mudar o arcabouço que eles mesmos fizeram. Seria muito ruim não tentarem ou fazerem algum movimento para neutralizar o arcabouço. Por que é preciso lembrar o que havia antes, um teto que, todo ano, precisava de uma PEC com dois terços de votos para mudar. Até por isso era muito ruim. O arcabouço tem mais chance de ser cumprido do que o teto. Só espero que não se volte a cometer os mesmos erros. Não dá para uma pessoa sedentária começar uma dieta se comprometendo a acordar para correr às 5h todos os dia. É preciso definir metas factíveis, alcançáveis.
Qual sua expectativa para o PIB em 2024, 1,5%, como a maioria do mercado? E o que vai monitorar mais?
Estou com base mais otimista, de 2%, mas vai depender muito do agro. Tem a eleição nos Estados Unidos, que pode ter (Donald) Trump, mas não acho que seja algo que traga grande risco, é algo para monitorar. A mais importante será a taxa de juro nos EUA.