Já se sabia que não seria um "discurso de balcón", no sentido de não seria para agradar às massas. Mas até quem sabia o que havia pela frente - caso da jornalista que assina essa coluna - foi surpreendido pela contundência do discurso de posse do presidente da Argentina, Javier Milei.
Milei confirmou, com suas próprias palavras, que "no curto prazo, a situação vai piorar". E recorreu uma frase do ex-presidente argentino Julio Argetina Rocca (que governou de 1880 a 1886 e de 1898 a 1904) para avisar que será preciso "supremos esforços e dolorosos sacríficos". E explicou com três palavras: "No hay plata" (não há dinheiro).
Foi um discurso de economista, com abundantes dados sobre a profundidade da crise argentina para sustentar que "não há alternativa" a não ser um duro ajuste fiscal, o que significa grandes cortes de despesas públicas. E já confirmou até o tamanho: 5% do PIB, o que equivale na Argentina a US$ 25 bilhões. Por duas vezes, o novo presidente afirmou que esse ajuste "vai cair, com toda sua força", sobre o setor público, não só sobre o privado.
— O ajuste impactará o nível de atividade, o emprego, os salários reais, a quantidade de pobres e indigentes. Haverá inflação, isso é certo. Nos próximos meses, não será diferente dos últimos 12 anos, quando o PIB per capita caiu 15%. Faz mais de uma década que vivemos em estagflação (estagnação econômica ou queda no PIB com alta inflação), este será o 'último mal trago' (algo difícil de engolir) para começar a restauração da Argentina.
A reação da multidão que estava à frente do Congresso também foi inesperada. Ao ouvir esse trecho especialmente dramático de um discurso classificado por jornalistas argentinos de "demolidor", reagiu com um coro de "Milei, querido, o povo está contigo".
Para justificar as previsões muito negativas no curto prazo, o novo presidente afirmou que governo anterior "deixa plantada uma hiperinflação" e adiantou, ainda, que entre dezembro e fevereiro, a alta mensal de preços pode ficar "entre 20% e 40%". Se esse processo não fosse interrompido, sustentou, a pobreza chegaria acima de 90%, e indigência, a mais de 50%.
— Todos os programas gradualistas terminaram mal. Todos programas de choque, fora o de 1959, foram exitosos. Os empresários não investirão até que vejam o ajuste fiscal, mesmo que seja recessivo.
Milei não deixou de mencionar nem o que vem sendo discutido no país nos últimos dias, na medida em que ficava clara a opção pelo ajuste duríssimo: a eventual reação do aparato "piqueteros" - entidades e sindicatos que costumam interromper rodovias e ruas em protesto contra medidas que contrariem seus interesses. Repetiu que, dentro da lei, tudo será permitido e, fora, nada, para afirmar que não se deixará extorquir por "quem utiliza os que menos têm para enriquecer a si mesmos".
— Para a classe política, quero dizer que não viemos a perseguir ninguém, nem para saldar velhas vinganças (...) Não pedimos aprovação cega, mas não vamos tolerar hipocrisia. Dirigentes políticos, sindicais e empresas que queiram se somar à nova Argentina serão recebidos de braços abertos. Não importa de onde venham, mas aonde querer ir. Mas não vamos tolerar extorsões. Vamos usar todo o arsenal do Estado para alcançar as mudanças de que o país necessita.
Posse civilizada
Apesar de a Argentina viver uma crise econômica muito profunda e encarar os mesmos problemas de polarização do país: teve uma posse civilizada: o ex-presidente Alberto Fernández passou a faixa a Javier Milei, diferentemente do que fez Jair Bolsonaro no Brasil, e reservou até um sorriso ao sucessor. Até Cristina Kirchner, ex-vice-presidente, que comandou o cerimonial no Congresso, disse frases a Milei que mereceram um "gracias" do novo presidente.