Nesta quarta-feira em que o governo do Estado e o Ministério Público do Trabalho (MPT) se reúnem para discutir ações de combate à exploração de trabalhadores, é preciso refletir sobre as circunstâncias que permitiram que o Rio Grande do Sul vivesse o vexame de ter 207 seres humanos trabalhando em "condições análogas à escravidão".
Existem componentes objetivos - a necessidade de corte de custos, mesmo a qualquer preço - e subjetivos - a concepção de que há diferentes graus de humanidade - na equação, sem contar a ambição desmedida de agentes econômicos.
Como esta é uma coluna de economia, vai ficar na análise do primeiro componente, sem deixar de registrar que a noção de diferentes graus de humanidade é muito arraigada e permeia outros tipos de relações, não se limita a criar condições para a escravidão moderna.
Por que, sim, é disso que se trata. E, infelizmente, não é um fenômeno pontual. Na mesma semana em que os gaúchos se horrorizavam com a descoberta das condições desumanas de trabalho em um Estado que gosta de celebrar façanhas, um naufrágio na costa do sul da Itália matou 71 pessoas que estavam sendo traficadas do Afeganistão e do Irã para a Europa. Se não perecessem na travessia, seriam outros escravos modernos.
A repercussão do caso deixou clara uma das consequências da redução de gastos sem critério: o custo final pode ser muito maior. Além dos danos à imagem, as empresas envolvidas enfrentam boicotes, devolução de produtos, ações judiciais. Em uma ironia circunstancial, o caso foi revelado poucos dias depois que o Instituto Capitalismo Consciente começou - exatamente no Rio Grande do Sul - uma série de debates para reduzir as desigualdades nos negócios.
O episódio de Bento Gonçalves tem de ser para o Estado o que o incêndio em uma fábrica de roupas em Bangladesh, em dezembro de 2010, foi para o fast fashion. A morte de 30 pessoas que não conseguiram fugir quando costuravam para marcas como GAP, H&M e Zara - entre muitas outras - foi um ponto de inflexão. Obrigou essas empresas a se responsabilizar por toda sua cadeia de produção - como tem de ser.
Até a primeira metade do século 20, escarradeiras eram objetos úteis. Até a década final do século passado, era normal fumar em avião. Aos trancos, o mundo evolui. Em poucas décadas, humanos constatarão, estupefatos, que seus antepassados das primeiras décadas do século 21 ainda toleravam índices intoleráveis de desigualdade.
Nas notas publicadas pelas empresas gaúchas mais conhecidas implicadas no trabalho análogo à escravidão - Aurora, Garibaldi e Salton - há indícios de que a lição foi aprendida. Há pertinentes pedidos de desculpas e necessárias promessas de mudança de políticas internas. Se não for por compreender que todos somos igualmente humanos, que seja porque consertar um erro desse tamanho custa mais caro do que evitá-lo.