Com experiência internacional em empresas de saneamento, Yves Besse é sócio do gaúcho Paulo Uebel na Cristalina, empresa fundada em setembro passado no Estado. Atuou por quase oito anos na Suez Environment, na França e no Brasil. Diz que a Cristalina segue com foco muito grande no Estado, envolvida neste momento na identificação dos municípios que estão em busca de respostas para o desafio do Marco do Saneamento, que acaba de cumprir dois anos, e levando informações sobre como estruturar e implementar soluções. Com base em sua experiência, considera "muito difícil" privatizar a Corsan até dezembro, meta do governo gaúcho.
Como está a atuação da Cristalina?
Identificamos cerca de 40 municípios muito interessados em avançar na implementação de soluções. Também estamos procurando contribuir na construção da solução para Porto Alegre e debatendo o que está ocorrendo. Há um projeto pronto há mais de três anos, mas o atual prefeito quis remodelar, o que é justo. Incluiu drenagem, o que pode fazer sentido, mas também embute o risco de atrasar a solução. É preciso discutir se o que queremos é ótimo ou bom. É ótimo discutir solução para água e esgoto com drenagem. Mas é bom? Não sei. É uma reflexão necessária. O bom é que, há dois anos, nem se falava em investir em saneamento no Rio Grande do Sul. Agora, se olhar em todos os Estados, aqui é onde há mais projetos em andamento. Em pouco mais de um ano e meio, assumiu a liderança dos Estados na busca de soluções, isso é excepcional.
Por que existe muito interesse ou por que outros Estados já encaminharam suas soluções, como o Rio de Janeiro?
Sabe quando começou o processo do Rio? Em 1995. Participei dessa história. Voltei ao Brasil em 1998, justamente para participar da privatização da Cedae, que havia começado entre 1995 e 1996, mas na época acabou não se concretizando. O BNDES tem tentando estruturar soluções para Estados há 25 anos. Não critico, mas é uma constatação da dificuldade de mudar uma situação consolidada durante 50 anos. O BNDES conseguiu enfrentar esse problema com resiliência e paciência. Hoje há consciência de que é importante, mas a responsabilidade pela solução é municipal. Quem tem o poder concedente é o município.
Há dois complicadores, a complexidade que é estruturar um projeto de privatização de empresa - o governo já fez algo para a oferta de ações, mas terá de adequar - e o outro são as eleições.
Com sua experiência, considera possível realizar o leilão da Corsan até dezembro?
Não sei exatamente com está o estudo hoje, mas é muito difícil. Não é impossível, desde que se coloquem os recursos necessários. Há dois complicadores, a complexidade que é estruturar um projeto de privatização de empresa - o governo já fez algo para a oferta de ações, mas terá de adequar - e o outro são as eleições. É normalmente complexo colocar uma privatização no meio de um debate eleitoral. Agora, acredito que não há mais volta em relação à Corsan. A companhia não consegue demonstrar capacidade econômico-financeira para atender às metas do marco. Sem isso e sem privatização, corre o risco de perder contratos e, em consequência, perder valor.
Em tese, haveria a alternativa de injetar capital, mas na prática não é viável para um Estado ainda muito endividado?
Em uma empresa ineficiente, quanto mais injeta capital sem enfrentar a causa da ineficiência, mais aumenta o buraco. E não estou falando da ineficiência das pessoas, mas dos limites impostos pela gestão pública. Envolve regras tão complexas que dificulta que as empresas públicas sejam eficientes. O arcabouço de controle torna um inferno de gestão. A privada pode ser mais eficiente, mas é muito importante que seja fiscalizada e regulada.
É muito difícil saber o que tem dentro das empresas públicas. Há muitas indefinições, o que afeta o valor da empresa e o risco que quem assumir. A privatização da empresa pública, não do serviço, é complexa.
No mercado, havia expectativa em relação ao que seria o primeiro processo de capitalização de uma empresa pública de saneamento. Não era o melhor modelo?
O único projeto desse tipo já realizado foi em Manaus, em 2000. É um modelo complexo. É muito difícil saber o que tem dentro das empresas públicas. Há muitas indefinições, o que afeta o valor da empresa e o risco que quem assumir. A privatização da empresa pública, não do serviço, é complexa. Precisar ter muita transparência sobre o que está privatizado, inclusive em relação a contratos que tem com os municípios, em que nível está o atendimento, a situação das instalações operacionais, a gestão de pessoas, as dívidas trabalhistas. Mas também é muito atrativo, se for bem feito.
O valor de investimentos necessário para cumprir o Marco do Saneamento parece inatingível até 2033. Esse prazo pode ser revisto?
O valor foi atualizado para R$ 893 bilhões em todo o Brasil, se quisermos universalizar água e saneamento até 2033. Isso significa R$ 80 bilhões ao ano, ou 700% acima do que vem sendo feito. É um desafio enorme. No Brasil, temos um histórico de que as políticas públicas não conseguem cumprir os objetivos que se colocaram. A meta é difícil, mas hoje todos estão discutindo como atingi-la. Já é um ponto positivo. Pode ser que se chegue à conclusão de que não será possível em 2033, mas em 2040. Ok, vamos em frente. É bom lembrar que, hoje, sete crianças morrem por dia no Brasil por falta de saneamento. Quanto mais tempo demorar, mais crianças vão morrer. Temos de acelerar, com ou sem drenagem. Acelera, faça. Se não, discute eternamente e não consegue definir solução.
Tarifa tem de ser justa e adequada. Justa para que o operador, seja público ou privado, possa prestar serviço com qualidade e faça os investimentos necessários. E tem de ser adequada à capacidade de pagamento da população.
O grande temor da população, de ter de pagar tarifas mais altas, tem sentido?
É falso. Todos os projetos de privatização do BNDES levaram a tarifas mais baixas, mais investimento e pagamento de outorgas (taxas ao poder público pelo direito de prestar o serviço e cobrar por isso). Hoje, as tarifas das empresas públicas são as mais altas. As da Corsan estão entre as mais altas do Brasil. Não gosto de falar em tarifa baixa ou alta, porque compara com quê? Tarifa tem de ser justa e adequada. Justa para que o operador, seja público ou privado, possa prestar serviço com qualidade e faça os investimentos necessários. E tem de ser adequada à capacidade de pagamento da população. Hoje, é injusta e inadequada. O Brasil nunca vai ser um país desenvolvido se não tiver duas coisas: saneamento e habitação. Não seremos um país desenvolvido enquanto houver favelas em condições de vida inaceitáveis. São Paulo é teoricamente a cidade mais rica da América Latina mas tem dois esgotos a céu aberto (os rios Pinheiros e Tietê). Como pode isso em 2021? É inadmissível. Estamos muito atrasados nesses dois pontos, por isso temos de correr para recuperar.