Há bem pouco tempo, neste mesmo país, era uma vez a PEC dos Combustíveis. Nasceu para cortar tributos federais e estaduais dos combustíveis — o que significa subsidiar preços —, mas depois que ficou claro, de novo, que quem não tem carro pagaria a quem tem, virou outra coisa.
O problema é a definição dessa "outra coisa". Teoricamente, agora a proposta de emenda constitucional deveria aumentar o valor do Auxílio Brasil e do vale-gás, criar uma ajuda para caminhoneiros, dar subsídios ao etanol e aos transportes públicos.
Na prática, no país dos jabutis parlamentares, acabou se transformando no maior criatório dessa espécie nacional, ou seja, provocou a proliferação de dezenas de medidas sem relação com o foco da proposta original, ou mesmo da já adaptada. Por isso, só desde quarta-feira (29), já foi chamada de PEC Miojo, PEC do golpe, PEC do Cheque em Branco e até PEC Kamikaze.
A versão "PEC miojo" vem da rapidez com que a PEC surgiu e foi convertida em "outra coisa". Na quarta-feira (29), o artigo que reconhecia "estado de emergência decorrente da elevação extraordinária e imprevisível do preço do petróleo, combustíveis e seus impactos sociais" tinha uma redação que, segundo algumas interpretações, permitiria até o adiamento das eleições.A hashtag #PECdoGolpe invadiu as redes sociais e o relator da PEC, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), prometeu retirar o trecho crítico.
Nesta quinta-feira (30), foram identificadas mais pegadinhas no texto da PEC. Uma previa a contratação de uma empresa para administrar o Auxílio Brasil, com gasto de R$ 1,3 bilhão. Outra incluía despesa com publicidade da Caixa (que timing!) de R$ mais 1 bilhão. Além disso, previa contratar, sem licitação, a operação da ajuda aos caminhoneiros — que já foi auxílio, virou pix e agora é voucher. Foi reforçada a visão "PEC Cheque em Branco". Emendas foram apresentadas para corrigir o rumo, mas seu destino é imprevisível, dados os antecedentes do Congresso.
Desde que foi proposta, por envolver mais um furo no teto (o que agora já não provoca tanto espanto, depois do buraco aberto em novembro passado para o orçamento deste ano) estimado entre R$ 35 bilhões e R$ 40 bilhões, vem acentuando quedas na bolsa e altas no dólar, porque espeta esse custo não em governos futuros, mas no bolso de contribuintes e consumidores. Isso fez surgir o epíteto PEC Kamikaze (como foram chamados os pilotos japoneses suicidas na Segunda Guerra Mundial). A intenção é amortecer o custo dos combustíveis mas, ao elevar o dólar, aumenta a pressão por reajustes.
A conta oficial da PEC
Esta é a versão apresentada pelo relator, mas omite os custos de operação mencionados no texto acima, que fazem o valor se aproximar de R$ 40 bilhões
Aumento do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600: R$ 21,6 bilhões
Duplicação do vale-gás, de R$ 56 para R$ 112: R$ 1,5 bilhão
Voucher de R$ 1 mil para 900 caminhoneiros: R$ 5,4 bilhões
Subsídio ao etanol: R$ 3,8 bilhões
Gratuidade para pessoas acima de 65 anos no transporte público: R$ 2,5 bilhões
As tentativas de reduzir o impacto da alta dos combustíveis (4)
1. A PEC "outra coisa": também chamada "pacote do bem", inclui aumento do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600 e voucher-caminhoneiro de R$ 1 mil. O custo é estimado em cerca de R$ 40 bilhões, que viram de recursos arrecadados com a privatização da Eletrobras e de receitas extraordinárias do BNDES.
2. Aprovada, mas ainda não totalmente aplicada: teto de 17% a 18% de ICMS para combustíveis, energia, transportes públicos e comunicações. Entrou em vigor em São Paulo e Goiás. Outros Estados, como o Rio Grande do Sul, contestam a medida no Supremo Tribunal Federal (STF).
3. No telhado: o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) cogitou mudar a Lei das Estatais, que blinda as empresas públicas de influência política direta. Seria para permitir "sinergia" com o governo. Parece ter sido engavetada, mas há sinais de que só aguarda um momento mais propício para voltar ao debate.
4. A caminho: a troca no conselho e na diretoria da Petrobras é uma tentativa de mudar a política de preços da estatal. O novo presidente, Caio Paes de Andrade, já tomou posse, mas o Ministério Público pediu, na quarta-feira (29), que o Tribunal de Contas da União (TCU) investigue a "possível ilegalidade" na nomeação por via expressa, sem seguir a liturgia habitual da substituição.
5. Cortina de fumaça: a suposta privatização expressa da Petrobras, nos mesmos moldes da Eletrobras, via capitalização, é considerada a pior das hipóteses, por substituir um monopólio estatal por outro privado. Os preços subiriam em velocidade ainda maior.
6. Sumiu: se a proposta inicial de zerar tributos federais e ICMS sobre combustíveis segue na PEC "outra coisa", ninguém sabe, ninguém viu.
A política de preços da Petrobras
Para reajustar o preço nas refinarias, a Petrobras adota um cálculo chamado Paridade de Preços de Importação (PPI), adotado em 2016, no governo Temer. A intenção é evitar que a estatal acumule prejuízo com por não repassar aumentos de produtos que compra do Exterior, tanto de petróleo cru quanto de derivados, como o diesel. A fórmula inclui quatro elementos: variação internacional do barril do petróleo — com base no tipo brent, que tem preço definido na bolsa de Londres —, cotação do dólar em reais, custos de transporte e uma margem definida pela companhia que funciona como um seguro contra perdas.