Ele começou com uma revolta individual, evoluiu para um manifesto com apoio de peso no PIB brasileiro e criou um movimento. Daniel Castanho é presidente do conselho de administração da Ânima Educação, um grupo com 8 mil funcionários, 12 instituições de ensino superior em sete Estados, nenhuma no Rio Grande do Sul. Propôs a criação do #nãodemita (naodemita.com) há pouco mais de uma semana, e já teve mais de 3 mil adesões. São empresas que se comprometem a manter todos os funcionários durante uma crise que piora na medida em que o desemprego aumenta. Reconhece que sua situação é confortável, porque acaba de fazer uma grande captação financeira. Mas afirma que já enfrentou muitas crises, sempre da mesma forma: com transparência e colaboração. Avalia que a pandemia vai acelerar uma transformação que já vinha em curso:
– Empresas mesquinhas, sem visão do coletivo, vão acabar.
Como surgiu a ideia?
Faço parte da ONG Gerando Falcões. O Edu (Lyra, fundador do grupo) ia dar uma entrevista na TV e sugeri a ele que, além de pedir doação de cestas básica, apelasse aos empresários para não demitir. Ele não falou, e resolvi escrever um manifesto. Mas pensei: 'assinado por uma pessoa, será revolta, não manifesto'. Liguei para alguns empresários e, em 24 horas, já haviam embarcado Santander, Magalu, MRV, Localiza, BRF, Cyrela, Suzano, Alpargatas. Não era mais uma revolta, nem um manifesto, era um movimento. Escrevi o manifesto com ajuda de todos. Sabe como é, muda ali, acrescenta aqui, imagina esses CEOs todos juntos...
Como o compromisso será monitorado?
Para verificar se as empresas estão cumprindo o combinado, não tem melhor forma do que as redes sociais. Se houver demissões nessas empresas, vão aparecer no LinkedIn, no Twitter, no Instagram.
Vivemos um momento que exige que empresários tomem conta de sua principal responsabilidade social: cuidar das pessoas que ajudam a construir a empresa todos os dias, seus funcionários diretos.
A adesão surpreendeu?
Tem mais de 3 mil empresas, está crescendo. Vivemos um momento que exige que empresários tomem conta de sua principal responsabilidade social, cuidar das pessoas que ajudam a construir a empresa todos os dias, seus funcionários diretos. Mas também estou provocando que cuidem dos indiretos, honrando os contratos com terceiros. Essa é a principal responsabilidade dos empresários nesse momento. Os funcionários das empresas que aderiam estão muito orgulhosos. Se você sabe que uma pessoa que pode pagar demitiu a faxineira e diz que, quando a crise passar, vai ter mão de obra sobrando, você vai achar é sacanagem de alguém que só pensa nele mesmo. Empresas e empresários que tiverem essa atitude com seus funcionários serão julgados de mesma forma. É claro que depende de poder fazer. Se não tem condições, se o melhor que puder fazer é desligar 20 para preservar 80, que faça.
Há características comuns entre as participantes, são mais protegidas, têm mais caixa?
Tem de tudo, inclusive empresas bem pequenas. O dono de uma, com oito funcionários disse que teve de puxar dinheiro do bolso para garantir salários depois de assinar o #nãodemita. Tem, inclusive, empresa que estavam com problema de caixa. Não há repreensão ou discriminação a quem demite. Ao contrário, há uma provocação, um chamamento, a quem pode garantir empregos. Há empresas que vão demitir para sobreviver. É legítimo, se não houver opção e não fizer isso pelo fato de que não tem consciência social.
Não é coincidência que um filme como Parasita tenha ganho o Oscar neste ano. A obra retrata como somos parasitas uns dos outros, mostra a parte pior, mais míope, do ser humano.
O que mudou para permitir o surgimento do #nãodemita?
Está mudando há alguns anos, mas se transformou de maneira mais intensa com o coronavírus. Não é coincidência que um filme como Parasita tenha ganho o Oscar neste ano. A obra retrata como somos parasitas uns dos outros, mostra a parte pior, mais míope, do ser humano. Se você tem uma condição melhor, tem de tomar conta de quem não tem. Não adianta dizer que seu dedinho está com uma inflamação, mas resto do corpo vai bem. Se o dedinho não for cuidado, pode levar à morte. Quem tem melhor condição tem mais responsabilidade no ecossistema.
É uma reação de momento ou uma mudança profunda?
É um processo, e a crise é um catalisador desse processo em todo o mundo. Esse movimento surgiu enquanto eu estava em casa. Preso, mas em uma gaiola de ouro. A preocupação maior é ver o país, imaginar o que está acontecendo extramuros. Há muitas empresas paradas e podem quebrar. Isso tira o sono. Mas está fazendo o mundo mudar. Estamos doando respiradores, temos pessoas da empresa trabalhando em hospitais de campanha, fazendo máscaras, fazendo o que for possível. Nossos alunos de psicologia estão fazendo sessões de terapia à distância, outros doando cestas básicas. Cada um faz o que pode, todos estão pensando em fazer algo a mais do que deve ser feito. Empresas mesquinhas, sem visão do coletivo, vão acabar.
Em 2008, estávamos em um trem fantasma, levando um susto a cada momento. Não havia previsibilidade nenhuma. A crise atual é uma montanha russa. A gente sabe que vai subir, virar à esquerda, à direita, mas vai acabar.
Qual a diferença entre a crise de 2008 e a atual?
Em 2008, estávamos em um trem fantasma, levando um susto a cada momento. Não havia previsibilidade nenhuma. A crise atual é uma montanha russa. A gente sabe que vai subir, virar à esquerda, à direita, mas vai acabar. Em setembro, vamos saber quantas pessoas morreram, qual o tamanho do desemprego. Não estou dizendo que a crise acaba em setembro, mas até lá teremos previsibilidade do estrago feito. Então, vamos nos segurar, estamos em uma montanha russa. As empresas precisam de caixa, é uma crise de caixa. Precisam manter o emprego, ser criativos para reinventar o negócio. Já vivi duros momentos de crise. Assumi uma empresa com faturamento de R$ 30 milhões e dívidas de R$ 35 milhões. Equilibramos. Depois, comprei uma escola que estava há cinco meses sem pagar salários e com os professores em greve. Agi com transparência. Abri todos os números e propus uma recuperação. Em um ano, pagamos os salários atrasados e antecipamos o 13º salário. Agora, os empresários têm legitimidade para chamar todos e abrir os números. Pode dizer 'olha só o que aconteceu com o nosso negócio', porque não foi ele que provocou essa situação. Mostre a situação e pense no que pode fazer para passar por isso.
As empresas do #nãodemita vão usar as ferramentas propostas pelo governo, como redução de jornada ou suspensão de contrato?
Sim, a ideia é usar todas as ferramentas que o governo oferecer. O site também se transformou em um lugar em que todos podem trocar experiências, uma empresa ajuda a outra. As maiores assessoram as menores a se tornar mais online. Há muita gente se solidarizando, estamos fazendo com que se torne um portal, uma curadoria.