Quando a indústria calçadista brasileira enfrentou a dura competição dos produtos chineses, todo um segmento mudou. Uma empresa gaúcha, porém, olhou o problema sob outro ponto de vista, e acabou conquistando a rara façanha de vender calçados infantis feitos no Brasil na terra do poderoso adversário de negócios. Quem construiu essa estratégica foi Marlin Kohlrausch, que no ano passado, quando a indústria completou 70 anos – para ele, ainda falta um ano –, afastou-se do comando operacional dos negócios. Uma de suas atividades foi escrever um livro, que está lançando agora, chamado A Construção de uma Marca com Propósito. Nesta entrevista, conta alguns episódios e comenta o atual cenário para a exportação.
Como a Bibi conseguiu virar o jogo e vender com marca própria na China?
Vínhamos há muitos anos em processo de construção de marca. Se você não construir uma marca valiosa e com propósitos firmes, foca sempre em preço. Defendo muito uma marca que faça sentido para a humanidade. Não pode prejudicar as futuras gerações, ainda mais que nós, que trabalhamos com crianças de zero a nove anos. Quando a empresa completou 70 anos, eu tinha como proposta passar o bastão. Fizemos uma preparação de mais de sete anos, com um conselho consultivo, foi escolhida a Andrea (filha de Marlin).
O que ouviu ao procurar o primeiro interlocutor para vender calçados na China?
Falaram que eu era um louco, um doido, mas a gente gosta de desafios fortes e de, quando o mundo vai para um lado, procuramos ir para o outro, para nos diferenciar.
Quando avaliou que era preciso desenvolver essa estratégia?
Há uns 25 anos, ainda exportávamos no sistema de companhia de exportação. Ou seja, fazíamos os produtos de outras empresas, que colocavam suas marcas em outros países. Vimos que não era possível continuar, porque a empresa não tinha o resultado esperado. Decidimos mudar e só exportar com nossa marca e nosso design. São decisões importantes. Cito, no livro, que a função do líder é antecipar desejos, comportamentos. Logo depois, a maioria das empresas do nosso setor começou a ter inúmeras dificuldades financeiras. Muitas partiram também para exportar com marca própria, não fazer mais aquele modelo de companhia de exportação. Foi um trabalho muito duro, difícil. Começamos pela América Latina e hoje exportamos cerca de 20% da produção. Não é uma quantidade grande, mas temos uma política de exportar independentemente do preço do dólar, todo o tempo.
Sobre câmbio, tenho uma definição muito simples: dólar ideal é quando importador, exportador e turista reclamam.
Falando em dólar, essa cotação tão alta ajuda ou atrapalha?
O dólar alto também não é muito bom, pois existem alguns insumos que são importados. Por exemplo, trabalhamos muito com tênis de luzinhas para crianças. Usamos LED, que não tem fabricantes no Brasil. Sou muito a favor do desenvolvimento de fabricantes brasileiros. Gostaria muito que o Brasil tivesse fábricas de LED, sofremos um pouco com isso. Sobre câmbio, tenho uma definição muito simples: dólar ideal é quando importador, exportador e turista reclamam. Assim, temos um dólar de equilíbrio. Quando só uns reclamam, não tem equilíbrio.
Qual seria a cotação de equilíbrio, hoje?
O valor justo seria algo entre R$ 4 ou R$ 4,10 (a cotação comercial fechou em R$ 4,39 3na sexta-feira passada). Está subindo muito função do coronavírus, e do juro que nunca foi tão baixo na história. O pessoal que tem alguma reserva está correndo para o dólar, isso também influencia a taxa de câmbio.
O único insumo importado são luzes de LED?
Tem um ou outro insumo que ainda importamos, mas procuramos valorizar os fornecedores do Brasil. Hoje, o mundo está com problemas, e decresce. O Brasil cresce, não dando voos de galinha, mas com avanço sustentável. Acredito em PIB de 2,5% neste ano. O Brasil está fazendo suas reformas, há muitas a fazer. Tem de diminuir o tamanho do Estado. Estamos vivendo uma ruptura que muita gente não está percebendo: quem vai tocar esse país é o setor privado. Mas falo naquele capitalismo consciente, porque o capitalismo, de modo geral, é selvagem. É um princípio que tem de na empresa toda, atender bem o cliente, os colaboradores, os funcionários. Com todos satisfeitos, naturalmente vai vir o lucro, mas, de modo geral, as companhias buscam o lucro de qualquer maneira, ou seja, capitalismo selvagem. Sou contra isso, o consumidor do futuro vai contra isso. Não compro produtos de marcas que sei que são do capitalismo selvagem.
O capitalismo selvagem é aquele que só visa o lucro, determina que esse lucro tem que ser buscado a qualquer custo. O lucro é consequência.
Como diferencia essas duas posições?
O capitalismo consciente é aquela empresa que cuida da sustentabilidade, respeita seus colaboradores. Atualmente, temos 1,2 mil pessoas nas duas fábricas, em Parobé e na Bahia (Cruz das Almas). Buscamos humanizar a gestão, reinventar o sentido de controle, é isso que eu vejo em um capitalismo muito mais consciente. O capitalismo selvagem é aquele que só visa o lucro, determina que esse lucro tem que ser buscado a qualquer custo. O lucro é consequência. Em primeiro lugar, está o cliente, que é a razão de ser de qualquer empresa.
Por que é importante pensar em sustentabilidade? Vi essas mudanças antes. Um líder, o principal executivo da empresa, o diretor, tem de compreender para que direção o mundo está indo, como está mudando o comportamento das pessoas e antecipar o máximo que puder. Quando uma loja não fornece nota fiscal, por exemplo, está se apropriando de um valor que não é dela. O sistema tributário brasileiro é complexo, de fato, mas não concordo quando não dá nota fiscal. A sustentabilidade é um valor de extrema importância para o consumidor do presente, e, para o futuro, nem se fala. Uma marca com propósito conquista colaboradores e clientes no mundo todo. Também enfrentamos o desafio de entrar para o varejo, antes dos demais, e hoje temos operações comerciais na América Latina e uma na Europa, na Romênia.
A produção de nossos fornecedores de LED na China começou a se normalizar na quinta-feira (20). Estava tudo parado, retomaram as atividades.
O que motivou a buscar clientes para a marca na China?
É um processo que não termina nunca, isso começou há cerca de 12 anos. Entendemos que um dos maiores mercados do mundo vai ser a China, em função da população. Vimos e temos plena consciência de que é possível fazer movimentos contrários. Quando o mundo se abastece na China, ir lá e vender produtos. Mas tem de ter algo diferenciado, com propósito e que agregue valor. Digo que vendemos benefícios. Nossos sapatinhos não têm toxicidade, provamos cientificamente que as palmilhas são naturais como andar descalço. Temos tecnologia que permite colocar o calçado sem entrar água sem molhar os pezinhos. Isso ajuda a buscar mercados fora do país, inclusive na China.
Como o episódio do novo coronavírus afeta a empresa?
A produção de nossos fornecedores de LED na China começou a se normalizar na quinta-feira (20). Estava tudo parado, retomaram as atividades. Estava começando a afetar nossa produção, mas a empresa é muito flexível, permite jogar com linhas de produtos. Na China, eles estão fazendo inspeções nas fábricas para ver se não há problemas e liberando para voltar ao normal.
No ano passado, ao concluir o processo de sucessão, a Bibi não hesitou em indicar uma mulher, sua filha, um movimento ainda inusual em empresas familiares. O que definiu a escolha?
A competência. Houve um desafio do conselho para que vários candidatos desenvolvessem competências, se preparassem, e começou a se observar qual seria o ideal. Os quatro são maravilhosos, vão trabalhar de mãos dadas. Hoje, a empresa está andando muito melhor do que quando eu estava lá. O pessoal brinca comigo, perguntando por que não saí antes (risos). Mas é preciso preparar a cabeça para depois. Fiz curso de conselheiro de empresas em junho do ano passado, escrevi o livro para ajudar futuros profissionais e empreendedores a construir empresas sólidas e volto a dizer: o país cresce pela iniciativa privada. Aos 69 anos, participo de conselho, dou palestras e jogo tênis, gosto muito de esportes.