Em 2003, uma Kombi deixou na frente do Sheraton Porto Alegre Hotel, aberto dois anos antes, uma senhora que separava lixo e cinco adolescentes da Vila Pinto, parte do bairro Bom Jesus, em Porto Alegre. Em novembro deste ano, um deles, Eduardo Finamor, 33 anos, tornou-se gerente de recepção da unidade de uma das maiores e mais sofisticadas redes hoteleiras do mundo. O início da trajetória de Eduardo foi relatado em uma reportagem de Zero Hora em 2006. O tema era mobilidade social, a possibilidade de crescimento pessoal e profissional de quem tem menos acesso a oportunidades. Poucos dias depois da mais recente promoção, o acaso o reuniu com a autora, a jornalista que assina esta coluna. O caso de Eduardo, ainda tão raro no Brasil, mostra que é a mobilidade é possível, desde que, como ele descreve, resulte de várias apostas. A história é contada a duas vozes para preservar a habilidade de comunicação de Eduardo.
"Morava na Vila Pinto, no Bom Jesus, e estava fazendo um projeto de reciclagem de papel com Marli Medeiros. Fazíamos agendas, livros de anotações, para vender no Fórum Social Mundial. Marli viu que eu tinha potencial para atendimento e disse que ia me levar a um hotel que seria o melhor do mundo. E levou, a mim e mais quatro, numa Kombi, para o Sheraton. Recomendou que usássemos 'roupa bem bonitinha', e fui com a melhor que tinha, uma camiseta amarela de gola polo. Dois de nós passaram nas primeiras eliminatórias. Comecei a fazer o preparatório para auxiliar de cozinha, mas no meio do processo, em julho de 2003, completei 18 anos. Como era um projeto de aprendiz, tive de ser desligado. Mas pessoas que conheci no Sheraton me deram oportunidade para aplicar para uma vaga de estagiário, que seria repositor de frigobar. Sou uma das apostas da Marli. Toda vez que tinha uma conquista, ia na casa dela para agradecer e compartilhar."
Marli Medeiros foi a fundadora do Centro de Educação Ambiental da Vila Pinto, uma ONG que administra o centro de triagem de lixo reciclável que ainda funciona. Mudou-se para o local em 1990, vinda da Fronteira Oeste, e não se conformou com a dominação do tráfico, já na época. Em 1996, formou a organização que deu emprego a dezenas de mulheres. O projeto do qual Eduardo fez parte se destinava a afastar os jovens moradores da atração dos ganhos "fáceis" representados pela venda de drogas. Faleceu no ano da última promoção de Eduardo, o menino que levou de Kombi até o Sheraton.
Quando entrei pela primeira vez, vindo da Bom Jesus, fiquei impressionado com lugar, que era lindo. Pensei, quero trabalhar aqui nesse lugar, é o palco do show.
"Quando entrei no hotel, participei de vários treinamentos que dão oportunidade aos funcionários de atuar em determinada função para ver se encaixa no perfil, se gosta ou não. Queria muito trabalhar no lobby, porque, quando entrei pela primeira vez, vindo da Bom Jesus, fiquei impressionado com lugar, que era lindo. Pensei, quero trabalhar aqui nesse lugar, é o palco do show. Participei do processo seletivo para mensageiro, que retira as malas dos carros, carrega, apresenta o hotel aos hóspedes. Foi ali que comecei a ver o capitão porteiro. A figura com roupa imponente e quepe me fascinou. Quando abriu vaga, obviamente me candidatei. Foi a função em que passei mais tempo, seis anos. Me sentia a cara do hotel, era o primeiro contato do hóspede, abria a porta, botava mala, me despedia. Tive grande destaque, fui funcionário do ano por três vezes."
Eduardo era capitão-porteiro – líder dos mensageiros e coordenador dos manobristas –na época da reportagem de ZH sobre mobilidade social. Publicada no dia 5 de fevereiro, estava guardada na gaveta do profissional, no saguão do Sheraton, no dia do reencontro casual. Diz que guarda o registro com foco na mudança de universo entre a sua Vila Pinto e um dos mais luxuosos hotéis da cidade em apenas 10 minutos "como um tesouro". É testemunho da ambição que permitiu oferecer uma vida melhor à mulher, Daniela – a quem conheceu quando ela trabalhava em uma lotérica do Moinhos Shopping, que funciona ao lado do hotel – e ao único filho, Artur.
Fiz cursos de inglês, sabia que seria importante. Tinha uma agenda pequena no bolso, onde escrevia frases em português. As meninas da recepção escreviam em inglês e me ajudavam na pronúncia.
"Depois de seis anos, comecei a cansar da rotina da porta. Fiz cursos de inglês, sabia que seria importante. Tinha uma agenda pequena no bolso, onde escrevia frases em português. As meninas da recepção escreviam em inglês e me ajudavam na pronúncia. Tentei uma vaga na recepção, entrei no turno da madrugada, que é mais tranquilo, as interações com hóspedes são menores. Depois, fui promovido, sem processo seletivo, para supervisor, indicado pelo gerente-geral. Mas faltava um passo para colocar a cereja no meu bolo. Ser gerente de recepção do Sheraton. Disputei a vaga, passei, é mais uma oportunidade que ganhei. Estou à frente de uma equipe de 25 pessoas. No dia 19 de novembro, dia da primeira reunião do comitê executivo, disse aos outros que aquilo era um mistério para mim. Agora meu dia a dia é menos operacional e mais estratégico. Sou fruto de apostas de muitas pessoas aqui dentro."
Um dos "apostadores" em Eduardo é o uruguaio Alejandro Irazábal, gerente-geral do Sheraton Porto Alegre Hotel. Convidado a dar um depoimento sobre o salto profissional, disse que 2018 foi um ano duro para assumir novas responsabilidades. Foi quando começou a efetiva integração da Starwood, dona da bandeira Sheraton, à Marriott, que comprou a concorrente em 2016. Conforme Irazábal, foram unidos os sistemas de administração e reserva, além da uniformização das práticas:
– Não foi um ano fácil para pegar um departamento novo, motivar a equipe. Não é todo mundo que tem cabeça aberta. É claro todo mundo ajuda, mas até a página 2, depois, é com você. Mas com garra, coração e estilo, ele conseguiu.
A menção ao estilo é uma pequena provocação, porque Eduardo, quando não está de uniforme (sim, gerente também usa), gosta de usar suspensórios e outros acessórios vintage, como ele mesmo descreve. Irazábal relata, divertido, que foi até alvo de certa pressão de equipe para promovê-lo a gerente, tamanho o apoio da equipe.
Compramos apartamento há três anos. Tem condomínio, churrasqueira, piscina. Foi um sonho realizado, vivo esse sonho até hoje. Penso nas batalhas que travei, nos leões que matei por dia.
"Não posso dizer que cheguei onde queria, mas a pessoa acima de mim é o gerente-geral, contratado da companhia. Eu e minha esposa nos emocionamos muito quando contei que havia conseguido a posição de gerência. É minha primeira experiência nesse nível, preciso aprender muito, aprender a liderar equipes. Preciso fortalecer isso para me tornar um gerente completo. Se não me mover na horizontal, para outra posição de gerência, o próximo passo seria para São Paulo, para ser diretor de operações. Compramos apartamento há três anos. Tem condomínio, churrasqueira, piscina. Foi um sonho realizado, vivo esse sonho até hoje. Penso nas batalhas que travei, nos leões que matei por dia. Só vendi a casa da Vila Pinto porque minha cunhada quis comprar. Criei um vínculo, porque construí do chão. Dava agonia pensar que outra pessoa ia morar lá dentro. Ela fez um quarto para a gente, ficamos lá quando vamos no final de semana fazer churrasco. Falei pra ela que se ela quiser comprar um apartamento, tem de vender de volta para mim."
Os pais de Eduardo, João Vicente e Mara, não escondem o orgulho do filho há anos. Foi o que manifestaram em 2006, quando ele era capitão-porteiro, e o que seguem sentindo e manifestando hoje. Ao comentar a imagem do filho com a reportagem que a colunista publicou em uma rede social, escreveu: "Se todos vocês têm orgulho dele, imagina eu que sou o pai. É exemplo para todos de caráter, ética e perseverança. Amo muito". Durante o tempo que Eduardo trabalhou de madrugada, passava tempo sem ver Arturzão. Agora, conta que faz questão de reunir a família para jantar. Mesmo que seja para uma torrada e um café. Eduardo chegou ao topo de sua carreira, mas as paredes erguidas na Vila Pinto têm alicerce sólido.
Não tirei nenhuma foto, tenho só as lembranças de ter atendido Madonna, Paul McCartney. Tive oportunidade de entrar na suíte de Paul (...), fiquei pensando: 'Tem pessoas que dariam tudo para estar nessa situação'.
"Pouco depois da promoção, fui receber Roberto Carlos. Minha função é facilitar a entrada do artista, ter certeza de que todo o grupo está no sistema. Fui até a doca com a equipe quando ele chegou. Foi supersimpático, deu boa tarde a todos. Como funcionários do Sheraton, não podemos fazer fotos com celebridades. Eles escolhem nosso hotel por isso, vão ao café da manhã sem ser incomodados. Não tirei nenhuma foto, tenho só as lembranças de ter atendido Madonna, Paul McCartney. Tive oportunidade de entrar na suíte com Paul, ele queria um canal específico na TV. Ele foi de uma simpatia e gentileza que fiquei pensando: 'Tem pessoas que dariam tudo para estar nessa situação'. E fiquei todo tempo pensando em não passar o limite da liberdade do hóspede."