Os dentes são manhosos e vingativos, eles aprontam na pior oportunidade. A Cidade do México me esperando, com sua simpatia e cores, e eu numa cadeira de dentista. Uma lasca de dente insistia em me cortar a língua.
Na sala de espera conheci um argentino sincero. Contou-me o motivo de estar ali: vivia de fazer propaganda e figuração para a TV. Sua mulher, também argentina, era modelo e lhe abriu as portas para esse afazer menor, mas lucrativo. Vivia no México de ser branco e boa-pinta, enquanto na Argentina não conseguia trabalho.
Depois desta conversa percebi que havia dois Méxicos: o da TV e dos comerciais e o da rua. O virtual era branco e loiro, o verdadeiro era moreno, quase todo marcado pela etnia indígena autóctone. Nada que um brasileiro não esteja acostumado, a TV daqui também lava mais branco. Mas por estar de fora, a diferença mostrava-se ainda mais gritante. Lá, como aqui, o mesmo complexo: um país mestiço que gosta de se ver branco. Apenas nós não costumamos importar figurantes.
A questão é: uma coisa é como você quer ser visto, outra é como os outros o veem. Nós, brasileiros, não enganamos senão a nós mesmos. Uma ocasião estava em Berlim, com meu irmão e família. Dia de sol, encontramos um bar de rua onde fomos tomar um chope. A garçonete, ultrassimpática – que também tocava acordeão entre uma lida e outra –, nos ouviu falando português e não decifrou. Perguntou de onde éramos. Minha cunhada, que fazia os pedidos por ter um bom alemão, lhe disse: brasileiros.
A garçonete caiu na gargalhada. Sabe aquelas pessoas que têm o dom da gargalhada farta? Coisa linda de escutar. Meu amigo e colega Edson Sousa tem uma dessas. A garçonete parou o bar e a redondeza com a estridência. Mas nós custamos a entender a graça. Pegamos quando ela retomou: boa piada! Mas afinal, de onde vocês são?
Constrangimento geral quando explicamos que, sim, éramos do Brasil. Na cabeça dela, e de qualquer europeu médio, Brasil é mestiço ou negro. Só na nossa autoimagem pareceríamos um país de brancos.
Queria encontrar essa garçonete outra vez para lhe dizer que no Brasil agora temos nazistas. Certamente ouviria outra gargalhada maravilhosa. Afinal, você olha para os autodeclarados nazistas e tem vontade de lhes dizer: caríssimos, com essa sua carga genética, o máximo que podemos lhes oferecer é o fascismo. O nazismo é o racismo extremo tornado política.
Mas o fundo da questão é um punhado de gente, sem qualidade ou virtude, cujo último recurso de valor, como o argentino acima, é ser branco. Espelham-se no nazismo também por ser um movimento derrotado, como eles se sentem. Vivem da triste paixão que é ser ressentido. Nulidades à espera de que lhes atribuam algum valor, que sabidamente não possuem. Perigosos, como todos os ressentidos.