Apenas dois dias e fechamos mais um ano. É inevitável os balanços e as cobranças, como também, as promessas para 2022. Não brigue com isso, faz parte: os aniversários e as datas redondas pedem relatórios. Nem é para os outros, somos nossos próprios juízes nas avaliações dos resultados, nas insanas métricas de desempenho. Não vou entrar no mérito dessa engrenagem, peço menos. Quero apenas que lembrem que estamos com uma pandemia em curso.
Faz quase dois anos que tivemos que nos reinventar, conviver com a distância de nossos pares, com a ausência de seus corpos, com simulacros de trocas de afeto virtuais. Nos descobrimos mais plásticos do que imaginávamos, e isso não é pouco. Apesar de tudo, conseguimos levar nossa vida, numa versão empobrecida, mas eficaz para a maioria das tarefas.
Temos uma defasagem que no futuro inventaremos como sanar. As escolas que o digam. Além dos rituais que não se cumpriram, das tantas comemorações adiadas, das conquistas sem o testemunho dos outros. Lembrem que vivemos uma época em que todos perderam alguma coisa. Perderam pessoas, perderam empregos, negócios faliram, sonhos se esfarelaram. Por um bom tempo o barulho das ruas arrefeceu, evidenciando nossas solidões. Agora, aos poucos, algo volta, embora os afoitos ignorem os perigos e estejam tomando porres de convívio perigoso.
Dá para entender, estamos todos cansados de bolar novas estratégias de cuidados, de usar máscara, álcool gel, de ter medo dos encontros. Estamos exaustos de pensar em vacinas e seus calendários. Ainda mais exaustos de gente que segue inconsequente depois de tantas perdas.
Quando uma criança nasce, ela descobre nos olhos que a tutelam o ponto de equilíbrio para sobreviver. Foi assim ao longo destes dois anos, mas tantas vezes precisamos contentar-nos com rostos pela metade, com imagens planas dos outros. Aprendemos a sorrir por cima das máscaras. Através das telas descobrimos como detectar sutilezas e melhorar os encontros. Sobre a dor das perdas, carentes de ritos de despedida decentes, tivemos que encontrar caminhos alternativos para o luto. E mais do que tudo, daquilo que precisamos nos orgulhar: foi revelada nossa potência para a saúde mental. Algumas pessoas sofreram mais do que as outras, mas coletivamente nos saímos bem.
Temo pelos apressados. Ao atirar-se para fora dos cuidados, como quem se joga de uma janela, perdem-se duas coisas. Em primeiro lugar, obviamente, a saúde coletiva, já que estes incautos ajudam a cultivar variáveis do vírus que colocam a todos em risco. Mas, como psicanalista, recomendo a cautela na volta à normalidade também por outra razão: para que este tempo de encontros, vínculos e solidariedade tão criativos, tão além do que consideramos óbvio, não seja esquecido.
Recomendo que neste ano que nos espera continuemos recuperando a normalidade lentamente. Saindo devagar, olhando para trás, deixando a casa arrumada para poder voltar. Cautela para não sair de mãos abanando, esquecidos dessa bagagem de superação que agora podemos levar junto. Houve muita dor, mas também tantos descobriram em si potências outrora ignoradas. Estamos machucados, mas estamos mais fortes.
Se seus seres queridos estão vivos, já é o suficiente para comemorar essa passagem de ano. Nem todos têm esse luxo.