Um amigo contou que fez um testamento vital. Indaguei os motivos. Falou do sofrimento de ver seu pai vegetando. Emenda com o relato da sogra. Uma senhora, até pouco tempo atrás ativa e conectada, que agora não reconhece ninguém da família. Tampouco ela sabe onde está, mesmo em sua casa de décadas. Relata a angústia dos familiares que assistem a essas mortes em vida. O testamento vital seria uma tentativa de não passar por isso e, especialmente, evitar que seus filhos passem por isso.
No documento pede-se que certas práticas que revertem a morte não sejam aplicadas, quando já não estivermos em condições de tomar decisões. É útil para que não se evite a morte quando a verdadeira vida - no sentido de qualquer consciência de si - já se foi.
Lembro dos meus pacientes. Alguns com a vida resolvida, buscam ajuda para lidar com a demência dos pais. Já nos acostumamos a enfrentar o declínio deles. Envelhecer não é fácil, mas é bem melhor que a outra opção. Porém, a demência traz um sofrimento de outra ordem. Os cuidadores assistem ao desligamento gradual do sujeito, enquanto resta um corpo que reage com estereotipias e instintos. Testemunham uma morte lenta, a vida que se esvai antes do fim. É um martírio constante para quem está ao lado.
Colocam-se questões impossíveis: até quando posso dizer que o meu progenitor está ali? O que é "isso" em que ele se transformou? Quando posso dizer que perdi meus pais? Mesmo sem resposta, instala-se um luto em prestações com juros abusivos.
Nesta mesma semana, uma paciente contou uma desventura. Receosa com uma ferida que não cicatriza na mão de sua mãe, marcou o dermatologista e a levou. Com o estacionamento lotado, parou longe. Era um dia de Porto Alegre quarenta graus. Sua mãe caminha com dificuldade. Foi uma epopeia até chegarem ao destino. Mas era necessária, o médico tampouco gostou do que viu e optou por retirar. Para evitar o desgaste, já fez na hora.
Chegando em casa, acomodou a mãe, que, esgotada, adormeceu. Ela se consumia em culpa por ter feito sua mãe atravessar o Saara. Uma hora depois encontra a mãe no banheiro à procura de um curativo. A senhora mostra para a filha o corte em sua mão e diz: não sei onde me arranhei. Indagada, não se recordava da consulta nem do procedimento. Não foi a primeira falha grave de memória da mãe. Agora, pela progressão, a filha sente que a memória dela só vai ladeira abaixo.
Como continuar filhos quando a consciência dos pais vai pelo ralo da memória? Dos corpos esvaziados de nossos pais, restamos como cuidadores. O problema é que essa sobrevivência apenas física tende a apagar a vitalidade dos afetos. O testamento vital do meu amigo é uma tentativa de que nosso corpo não sobreviva sem nós, a ponto de apagar as boas memórias que desejamos deixar.