Outono de 1987, Penitenciária Estadual do Jacuí.
Francisco era o último preso que entrevistaria no dia. Processo para progressão de pena. Meia-idade, nenhum crime violento. Era um desses que poderiam ter uma nova chance. Lembrei da frase de um agente penitenciário: eles não mudam, eles cansam. Quem sabe ele estaria “cansado” dessa vida.
Examinando a papelada, vejo que seu aniversário seria no dia seguinte. Aproveito para lhe dar parabéns quando chega. Ele responde que não é este dia. Apenas é o que está nos documentos.
Ele resume sua história para explicar o fato. Do pai nunca soube, a mãe o entregou para a avó quando mal caminhava. Quando a avó morre, anos depois, ninguém conseguiu localizar a mãe, ou outro parente, e ele foi para um orfanato. Foi ali que obteve seu primeiro documento e estimaram a idade que tinha. Ele supõe que o dia no documento seja o mesmo em que o registraram. Que preencheram assim para não dar trabalho.
Até gostava do orfanato, mas fugia para procurar a mãe. Voltava quando tinha muita fome. Cresceu um pouco e foi parar na Febem por furto. Quando saiu, começou a traficar maconha e começou um ciclo. Ia preso por tráfico, quando voltava para a rua, voltava a traficar e era preso.
– Nunca encontrei minha mãe, acho que morreu. – Disse ele triste. – Queria saber meu signo.
Pediu-me um cigarro. Não fumo. Tinha porque nas cadeias é moeda de troca. Passo um cigarro e fósforos. Ele vai fumar de pé na janela olhando o Rio Jacuí. De lá, nem deixa prosseguir a entrevista. Diz não querer a progressão de pena. Justifica que está bem ali, tem amigos, é respeitado. Na conversa, nas entrelinhas, suponho que ele siga traficando, agora na prisão.
Pede apenas para ficar mais um pouco fumando e olhando o rio. Aceito o pedido. Fiquei na mesa pensando em quem topei. Um homem que recebera quase nada da vida. Não queria sair porque não tinha para onde ir. Não tinha família, raízes, nem mais a esperança de encontrar a mãe. Sua família agora eram a cadeia e o tráfico.
Provavelmente a busca, nas suas fugas infantis, era mais do que à mãe. Procurava a única pessoa que sabia sua origem. Como se pode ter um futuro quando não se tem um ponto de partida? O signo que ele queria saber seria uma identidade imaginária mínima, nem isso tinha.
Quando ele sai, na porta, digo que bem ou mal o aniversário que lhe tocou era o do papel. Lhe dou um maço de cigarros fechado como presente pela data.
Ele me retribui com um sorriso.
Até hoje não sei se foi um gesto generoso ou se não suportei sua penúria subjetiva extrema. O desamparo de alguém que nem ao menos tem uma data para chamar de sua.