Existem diferentes formas de amar os automóveis, a mais excêntrica é a do meu tio Jorge. Não pensem que ele é obsessivo, meticuloso. Ao contrário, acha que carro muito cuidado pega balda. Melhor é um tratamento rústico e impessoal, manutenção básica, lavar e faxina só no Natal.
Alguém desavisado pensa que o carro para ele é ferramenta. Só que não. Ele viaja muito, por necessidade de trabalho e por deleite. Não pode ver uma estrada, que se atira. Desenvolveu um gosto pelo asfalto, engole quilômetros com prazer. Seus carros são tanto testemunhas quanto companheiros dessas cotidianas travessias solitárias. Minha mãe, sua irmã, tem a tese de que ele, assim como meu pai, beberam gasolina por acidente quando crianças, tal o apego a essas máquinas e o gosto pelo volante.
O drama chega na troca de carro. Depois de tantas andanças, ele se apega como quem adota um animal de estimação. E, como bom gaúcho, não é porque o cavalo ficou idoso que pode virar salsicha. O que fazer quando o carro velho já não passa segurança para as lides de estrada? O tio reforma e passa para um filho usar na cidade, ou fica como carro reserva em Ijuí, ou ainda deixa na casa de praia em Garopaba. O fato é que ele não os descarta, os velhos camaradas não ficam longe de seus olhos e cuidados.
Em um acidente sério que teve, a camionete ficou irremediavelmente destruída. Acha que ele aceitou o diagnóstico? Arrumou um mecânico tão cabeça-dura como ele e a refez. Portanto, seus carros podem reclamar de que não tiveram os melhores carinhos, mas nunca faltou fidelidade.
Porém os anos passam e tudo vira sucata, por melhores que sejam os reparos. Enquanto isso, a família pressiona, pois as casas tornaram-se um estacionamento de supermercado.
Hoje desapego é chique. Livrar-se dos objetos com os quais tentamos impedir que nosso passado nos abandone é sinal de saúde. Fazer balanço da vida e descarte de excessos se equivalem. Sua outra irmã, que tem pares de sapato para as próximas cinco encarnações, o aconselha quanto ao desapego automotivo. A contragosto, meu tio se desfez dos mais acabados.
Hoje desapego é chique. Livrar-se dos objetos com os quais tentamos impedir que nosso passado nos abandone é sinal de saúde
Será? Minha tia Zaia descobriu uma enigmática caixa com molhos de chaves e meu tio desconversou sobre um recibo de depósito alugado. Surgiu na família a suspeita de que ele de fato nunca vendera os carros. A hipótese é de que os teria levado para longe de nós, intrometidos, onde curtem sossegadamente a merecida aposentadoria.
Conhecendo meu tio, não duvido. Consigo imaginá-lo feliz frente a sua coleção de lembranças, encabeçada pelo seu primeiro fusca bege, lendo seu diário de vida inscrito em lata e pneus. Suas lembranças são maiores do que isso, mas que culpa tem se o afastamos de seus amuletos das outras épocas, de suas armaduras de guerras passadas, de seus velhos companheiros de aventura?