Nunca esquecerei o drama de uma amiga quando se deu conta de que algo muito ruim iniciava seu curso. Era um dia normal quando seu marido, repentinamente, lhe pediu para que voltassem à casa. A questão era que estavam em casa, no imóvel em que viviam fazia décadas. Que fazer nesses casos?
Todos ganhamos um bônus: a vida está prolongada, a medicina empurrou para todos a linha do inevitável. O problema é que corpo e cérebro não envelhecem na mesma medida. Tínhamos antes a demência senil, quadro genérico e vago, porém agora existe um leque de doenças neurodegenerativas para nomear o sofrimento pelo qual nossos idosos passam. Mas se o apuro diagnóstico avança, o mesmo não se dá com a terapêutica, de progresso ainda tímido.
A massiva presença de pessoas de idade produziu um novo momento, com duas perguntas: como é viver mais tempo e de que maneira isso vale a pena? O texto "A casa da memória", na revista Piauí número 156, de setembro passado, ajuda a pensar essa questão. O interessante do artigo é o relato de uma mudança de paradigma: enquanto antes relembrávamos a cada momento nossos desmemoriados de sua verdade, agora os poupamos de sua história.
Quem já teve uma experiência com eles sabe que, quando nos perguntam algo banal como "onde está fulano?", se dissermos a verdade – "ele morreu" –, os apunhalamos como se fosse a primeira vez que escutaram a notícia. A questão é que em seguida já esqueceram. E podem nos perguntar mais uma e incessantes vezes: "Onde está fulano?".
A massiva presença de pessoas de idade produziu um novo momento, com duas perguntas: como é viver mais tempo e de que maneira isso vale a pena?
A informação para essas pessoas gira em falso. Escutam, sofrem, mas não assimilam. Então, vale a pena torturá-los mil vezes se a dor é para nada? Esse é o cerne do artigo e retrata o cotidiano de quem trabalha com pessoas cuja memória já não funciona.
A autora cita experiências de asilos onde, quando o hóspede pede para ir para casa, alguém o acompanha até uma parada de ônibus falsa. Depois de um tempo, cansado, ou esquecido do propósito, a mesma pessoa o leva de volta sem problemas. Esse voltar para casa, tão comumente demandado, é o lar paterno da infância, quando se sentia cuidado. Adianta dizer que esse lar já não existe?
A questão é ética: devemos mentir para os desmemoriados? Optamos por fazê-los felizes e os poupamos das más notícias, ou os confrontamos com sua história e seu estado? Sinceramente, creio que nesses casos de demência avançada, o melhor seja criar uma ficção que os mantenha confiantes. Essas pessoas recuam para um passado que os conforta. Por que as tiraríamos dali?
Mas as questões sem resposta são: quando alguém deixa de ser ele mesmo? Qual o estatuto desse novo ser que surgiu, em que pouco ou nada lembra o eu do passado? Quando começamos a fabular, que é a palavra justa nesses quadros, para nossos queridos?
Novos tempos, novas e duras questões...