Altered Carbon é um seriado de ficção científica da Netflix. Fraco, mas com um mote ótimo: alcançaríamos a imortalidade pela tecnologia. A ideia é simples, arquivaríamos todas as memórias do nosso cérebro e as descarregaríamos em outra "capa" que é assim que são chamados os corpos. Não conseguimos parar a decadência biológica, mas poderíamos trocar de "capas" infinitamente.
Perde-se nos séculos nossa obsessão em nomear um duplo – a alma – que serviria para driblar a finitude. Como constatamos a decadência física do corpo, criamos um ser em paralelo incorruptível. Assim nasceu o binômio corpo e alma, apropriado por quase todas religiões. Está ideia é tão arraigada que é difícil pensar desde fora dela, e nisso se embasa o seriado acima.
Quando o mundo digital surgiu, começamos a usá-lo para mais uma metáfora dessa dualidade. Temos o hardware, a máquina, que é concreta e as memórias e o sistema operacional, que, embora físicos, são sistemas impalpáveis e plásticos. Trocamos de computador levando os conteúdos. Logo, por que não poderíamos guardar nossas memórias e nosso, "sistema operacional cerebral"?
O problema é apenas um: em nós não existe essa duplicidade. O cérebro, como ele funciona, e nossas memórias são uma coisa só. Suporte e sistema são fusionados. Quando aprendemos algo se produz uma mudança na arquitetura neuronal. Aliás, nossas memórias são guardadas de uma forma impensável. Arquivamos uma amostra e reconstruímos automaticamente o resto quando a evocamos. Por isso os relatos mudam com o tempo, além de os editarmos da maneira mais conveniente. Estranho sistema de compactação... Como fazer isso rodar em "outra máquina"?
Antes que alguém fale em transplante de cérebro, lembre-se que não há um suporte de conexão que o atarraxe à espinha dorsal. O cérebro é ligado a uma extensa rede de neurônios ramificado por todo corpo. Por exemplo, nos intestinos estão milhões deles. Levaremos junto para o outro corpo?
Pensamos desde e através de um corpo, que tem fome, sono, dores, medo, prazer, adoece, cansa, quer sexo, tem estranhos desejos, sofre de angústia, e possui uma carga genética que nos faz ser tão diversos. Tantas vezes o corpo nos pesa, nos atrapalha; faz sentido o desejo de ser um pensamento incorpóreo, uma alma. Assim daria para desdenhar do corpo e até odiá-lo, maltratá-lo, quando o culpamos por nossas fraquezas, ou quando nos trai envelhecendo.
A ideia da alma é o triunfo da poética e da imaginação sobre todas evidências. O recalque do corpo acalma nossa angústia de ser mortais, mesmo que ao preço de um atrapalho cognitivo basilar sobre a condição humana. A ideia da alma serve para negar nossa insignificância e transitoriedade, mas turva a visão sobre como somos. O divórcio com o corpo pode custar caro. Faça sua escolha.