Cada um nasce com um dom. Tem quem veio para a música, outros para um esporte, ou para línguas, ou ainda para uma carreira intelectual. Falo em talento, aquela disposição anímica e cognitiva que, de partida, te deixa à frente dos outros. Quando recebemos essa graça, aprendemos com facilidade, nadamos de braçada onde os outros se afogam.
Muitos passam a vida procurando seu dom. Foi meu caso. Não há nada que eu aprenda rápido ou desempenhe bem. Nos esportes, ao menos tinha a desculpa da miopia, apanhava de relho da bola. Para a música, sou tão desafinado, que meus amigos sempre sabem que sou eu quando toco a campainha. Se juntar com coordenação motora é pior. Quando me viram dançando, minhas filhas me disseram que só não sou confundido com uma foca tendo um ataque epilético pela cor. Salvo focas albinas, creio.
Sou ótimo em matemática, mas não quando ela é misturada a números. Tenho uma memória prodigiosa, mas só para desimportâncias. Escrevo porque existe corretor ortográfico. Faço 20 rascunhos para uma página. Tenho dislexia, troco letras, devoro sílabas e acentos. Tanto que meu revisor da ZH pediu aumento.
Foi um choque descobrir minha aptidão. Afinal, lavar louça não é uma perícia valorizada. De qualquer forma, ninguém lava louça como eu nos quesitos rapidez, eficiência e economia. Uso o mínimo de água e produtos, sem falar que nunca quebro nada. Habilidade útil e altruísta, pois mais vantajosa para os outros do que para mim.
A questão é o reconhecimento. Talento para chef ganha programa de televisão, mas os lavadores de pratos, panelas e congêneres como ficam? Não há mídia, não há prêmio, não há charme. Embora um prato sujo desmereça um restaurante, o asseado não o enobrece. Louça limpa é uma arte não valorizada.
Todos temos um dom. Aqueles que dizem não ter apenas não admitem que o seu é mixuruca. Aceita, o universo não é justo. Desiste de buscar o gênio dentro de ti e te resigna que teu dom é cuidar de cachorro. Será melhor para o cosmos, para tua família e para o teu cão. Para de torturar teu professor de violão – e os vizinhos – e vai passear com teu amigo peludo.
Agradeço publicamente a Aspodofa – Associação dos Portadores de Dons Fajutos –, que me ajudou a curar minha "disforia de gênio". O transtorno psíquico de pessoas que acreditam ter uma genialidade que não possuem.
Vai cuidar do jardim, quem sabe está lá tua transcendência. Eu, lavando louça, encontrei meu tamanho. Nós, que não somos especiais em nada, nem por isso somos menores. Somos artistas na modalidade esforço, perseverança, dedicação. Graças aos nossos dons de segunda divisão, aprendemos a viver sem superpoderes. Sabemos que a vida não é o que ganhamos do destino, é, sim, como fazer bem aquilo que recebemos. Nem que seja fritar pastel.