O apelido dele não é esse, mas o batizamos de Seu Gentileza por motivos óbvios. Cordial, atencioso, incansável em atender bem quem atravessa a porta de sua pequena ótica. Seu Gentileza lembra um passado de atendimento próximo e preocupado com o bem-estar dos clientes, mas na verdade ele é o futuro – o contraponto a um comércio digital asséptico, robótico, ordenado por programadores de inteligência artificial a milhares de quilômetros.
Seu Gentileza cuida dos óculos da família há umas duas décadas. Tinha uma lojinha de esquina, mantida por ele e pela mulher, igualmente atenciosa. Sem surpresa, cresceram, se mudaram há alguns meses para instalações maiores e contrataram uma auxiliar, dedicada como ambos. Não saíram do bairro, do círculo de crianças e adolescentes que veem crescer e dos antigos clientes que vão precisando de lentes com grau cada vez mais alto.
O segredo de Seu Gentileza não são só a gentileza e os preços justos. O que o torna notável é a sua paixão por armações e lentes. Fico extasiado ao ver seu entusiasmo em discorrer sobre o aro que melhor se adapta ao rosto do cliente e demonstrar paciência de monge em sugerir alternativas até que se consuma a compra.
Seu Gentileza não precisa exercer o posto de embaixador em Paris para ser feliz e encontrar seu propósito a cada dia em que repete o ritual de abrir a lojinha. Ainda que sem as emoções de montanhas-russas, basta-lhe contentar a clientela com a convicção de que não está só vendendo óculos, mas ajudando alguém a enxergar melhor. E cumprimentar pelo nome o cliente que entra para um ajuste e uma limpeza – sem pagar nada, é claro.
Mesmo que um dia possamos apertar um botão no computador e horas depois receber uns óculos personalizados, dispenso a conveniência.
Ali no bairro, a algumas quadras de Seu Gentileza, também tem uma ferragem das antigas, de prateleiras alcançáveis por escadas e corredor entupido de quinquilharias. Quando me mudei, há quase três décadas, já estava lá, bem como, acredito, alguns de seus funcionários. Ao contrário de Seu Gentileza, eles não primam pela simpatia. O que os distingue é a experiência adquirida. Alguns já devem estar bem entrados nos 70 anos, mas deus os livre de irem pro Litoral pescar. Eles têm prazer em descrever em detalhes os diferentes modelos de dobradiças e encontrar a conexão mais adequada para cada tipo de encanamento. Valem ouro para clientes enredados nos enigmas dos parafusos.
A ótica da gentileza e a ferragem do conhecimento são insubstituíveis. Mesmo que um dia possamos apertar um botão no computador e horas depois receber uns óculos personalizados, dispenso a conveniência. Não troco a gentileza e a experiência do comércio do bairro por uns tostões economizados, e muito menos por um robô apatetado que finge simpatia, mas é apenas um incompetente digital na relação com humanos.