Numa guerra, a desinformação é como o ódio forjado entre inimigos: ela se expande na medida da intensidade das paixões e dos interesses em confronto. No caso da guerra entre Israel e Hamas, algumas versões são disparadas e voam como foguetes digitais que provocam grande destruição nos esforços de paz, com a desvantagem de muitas vezes não poderem ser interceptadas por outras tecnologias.
Até o momento, a explosão no Hospital Ahli Arab é o clímax desta guerra paralela. Se já é desafiador dirimir versões em tempos de calmaria, em um território em abrasão mantido sob cerco do vizinho e sob jugo do regime de terror do Hamas, a busca da verdade muitas vezes também se oculta sob escombros, como os de instalações civis usadas de escudo pelos terroristas. Em circunstâncias de alta voltagem emocional, acredita-se em quem e naquilo em que se quer acreditar, mas a história e a experiência ensinam que, nos regimes democráticos sob constante escrutínio de uma imprensa livre, como Israel, eventuais invencionices terminam por ser desmascaradas.
Governantes democráticos também mentem, mas diante do risco da humilhação pública, pelo menos pensam duas vezes antes de criar versões delirantes ou exageradas. George W. Bush e seu governo tisnaram a história dos EUA por terem difundido a ilusão de que o Iraque abrigava "armas de destruição em massa" como pretexto para a invasão do país em 2004. O ditador Saddam Hussein foi um dos maiores criminosos da história recente, e sua destituição melhorou a humanidade, mas a alegação americana transformou os EUA no bandido da guerra. As narrativas de hoje, numa caricatura legada pela mentira, tratam de fazer parecer que o Iraque era um país livre e feliz quando foi subjugado por uma potência imperialista para saquear suas riquezas.
Na Guerra da Ucrânia, uma sofisticada guerra de narrativas também tomou conta do território conflagrado, mas, como em Israel, é no lado democrático que pelo menos há a melhor chance de se identificar a verdade, ainda que se leve semanas ou meses. Foi assim, aliás, no massacre de Bucha. Graças à atuação da imprensa, comprovou-se aquilo que os russos negavam veementemente: as tropas invasoras haviam executado friamente 458 civis, incluindo idosos, mulheres e crianças. Já em 27 de junho passado, um míssil matou 18 pessoas em um shopping center de Kremenchuk, na Ucrânia. O governo de Kiev culpou a Rússia de alvejar civis deliberadamente, mas uma outra investigação jornalística independente demonstrou que o míssil havia sido disparado desde o lado ucraniano. Como a Ucrânia é uma democracia, nenhum jornalista ou organização humanitária foi perseguido ou expulso por ter revelado o erro. Tivesse ocorrido no lado russo, um jornalista correria o risco de passar 17 anos atrás das grades apenas por dizer que há uma guerra na Ucrânia, porque Vladimir Putin insiste que chamem sua invasão de "operação militar especial."
Apesar do súbito surgimento de milhões de experts em explosão em hospitais, ainda falta se materializar a verdade definitiva sobre a tragédia e, portanto, nenhuma versão precipitada deveria ser absorvida e retransmitida sem se pestanejar. O fato é que em toda guerra ocorrem equívocos. Soldados morrem por "fogo amigo", e mísseis e bombas atingem por engano vítimas do próprio lado. Um dos desastres mais célebres ocorreu na Holanda ocupada pelos nazistas. Em março de 1945, um esquadrão inglês com 56 bombardeiros tentou destruir baterias de foguetes V2 escondidas em um parque de Haia, errou completamente o alvo e dizimou quarteirões inteiros do bairro de Bezuidenhout, matando 511 pessoas. No dia seguinte, a Inglaterra lançou folhetos pedindo desculpas pelo massacre involuntário.
A batalha por corações e mentes é um chavão que vem desde a guerra do Vietnã, mas se mostra cada vez mais elaborada. Desinformação e descontextualização passaram a ser vitaminadas de forma instantânea pelas redes sociais e por influenciadores que divulgam seletivamente versões e fake news para envenenar ainda mais almas ingênuas. No universo que se acha informado pelas redes, essa guerra ideológica termina por sufocar a verdade. Todos os governos, sem exceção, se valem do recurso de vender suas narrativas pelas redes, mas no final, o que fará a diferença é se elas serão ou não confrontadas e decantadas por investigadores e jornalistas independentes. E em grande parte do planeta, como se sabe, já não existe mais jornalismo profissional ou ele, entre outras instituições, está submetido ao controle de autocratas.
Outro ingrediente que sempre estimula a imaginação, incendeia paixões e obscurece a realidade é a ancestral narrativa da luta do "mais forte contra o mais fraco". E aí os EUA e seus aliados entram em clara desvantagem em qualquer disputa de versão, porque a opinião pública tende a ficar do lado daquele que se apresenta como vítima de bullying geopolítico. Como articulista, esquadrinhei uma destas incontáveis situações em 2001, quando os EUA fizeram chover bombas e mísseis sobre o Afeganistão da Al-Qaeda e dos talibãs em represália aos atentados de 11 de setembro.
Um sorveteiro afegão de nome Mohamed se apresentou na fronteira do Paquistão, ferido e sem uma perna, dizendo que havia sido atingido por uma bomba lançada pelos EUA. Imediatamente, a história de Mohamed ganhou o mundo como um símbolo da crueldade norte-americana por alvejar civis. Dias depois, um jornalista foi conferir melhor a história e procurou Mohamed no hospital. Ali, ele admitiu candidamente que havia pisado numa mina dos tempos da invasão soviética e que inventara a história do bombardeio Made in USA para conseguir cruzar a fronteira e receber atendimento médico no Paquistão. Mas a essa altura, sem o apelo da bomba imperialista, já ninguém mais se interessava pela perna do pobre sorveteiro.