Um avião lotado cai e o jornal, naturalmente, dá grande destaque à tragédia. Logo depois, um representante da companhia aérea liga para a redação e cobra:
- Por que vocês não falam de todos os outros aviões que decolaram e pousaram com segurança?
Obviamente fictícia e um tanto sem graça, a anedota é a caricatura de um crescente fenômeno retórico do qual provavelmente você já foi testemunha, vítima ou o empregou – ou os três. Confrontado com uma argumentação embaraçosa, o interlocutor se desvia do assunto com o recurso de uma outra pergunta para tentar desacreditar o enredo alheio: “E por que você não fala de...?”.
Em inglês, cunhou-se até uma expressão para identificar o ardil. É o “whataboutism”, advindo de “and what about?”, que pode ser traduzido como “e sobre aquilo?”. A manobra de evasão não nasceu por geração espontânea. O jornalista britânico Edward Lucas, autor do livro “A Nova Guerra Fria”, de 2008, localiza-a como uma arma da propaganda soviética. Assim como outros autores, Lucas observa que a falácia era usada sistematicamente pelo governo comunista quando alguém do Ocidente capitalista apontava as contradições da URSS e do comunismo. “E por que você não fala dos seus mendigos e da miséria?”.
A fórmula de revidar com questões que não têm a ver com o ponto em debate foi sendo absorvida no próprio Ocidente de sociedades polarizadas, nas quais, no fundo, poucos querem conhecer a visão dos outros e muitos querem impor a sua própria. O “whataboutism” virou lugar-comum em discussões incendiadas e vai ganhando terreno como uma praga a minar diálogos efetivos.
Com nuances próprias, o recurso é primo-irmão do ato de desconversar. Leonel Brizola e Paulo Maluf, dois reis de desviar o assunto, discorriam sobre o que bem entendiam nas entrevistas coletivas, enquanto os repórteres, sobrancelhas levantadas, se entreolhavam desanimadamente. Mas não costumavam reagir com outras perguntas. Ambos simplesmente ignoravam questões incômodas. Já o porquenãofalardismo é um fenômeno do nosso tempo. Ele não pretende apenas desconversar, mas tirar o interlocutor do sério ao supostamente apontar contradições do seu lado, ainda que não verdadeiras ou realistas.
Com as redes sociais e a fragmentação da sociedade em bolhas, o fenômeno se enraizou de vez no Brasil. Um tenta falar do desmatamento da Amazônia e o outro redargui com um “E por que você não fala da corrupção?”. Um levanta o tema da indústria de falcatruas na Petrobras, o outro reage com um “E por que você não fala das milícias?”. E assim vamos. De um porquenãofalardismo a outro, os muitos brasis já não se encontram na esquina para tomar um café e simplesmente conversar sem tentar apoquentar o outro vivente.