Certo dia, há coisa de mais de 20 anos, eu diretor de redação de Zero Hora, uma colega morena curvilínea entra na minha sala e senta na minha frente.
— Quero reclamar do David. Sei que ele está escrevendo essas crônicas pra mim. Mas aviso que meu marido é militar e muito ciumento. Tenho medo do que ele vai fazer.
Na época, David Coimbra estava numa daquelas fases, digamos, libidinosas, esculpindo deliciosas crônicas sobre o sexo oposto e, às vezes, é verdade, me deixando exasperado por romper, qual um centroavante das letras, determinados limites.
David era cronista, editor-executivo de esportes e, não por último, um amigo próximo. Talvez pela minha personalidade mais séria (e mais responsável!), David e eu tínhamos longas conversas, ele buscando conselhos e orientações sobre sua vida profissional e pessoal. Invariavelmente, tal qual um irmão mais velho, eu o enquadrava.
— Acabaram as farras, David! Economiza uma parte do salário, David! Compra uma casa, David! Arruma uma namorada firme, David!
David ria, jurava de pé junto que ia se ajeitar e, finalmente, quando conheceu a Marcinha, colocou a vida em ordem, para gáudio deste amigo e tranquilidade de seu editor. Então, naquele dia, assim que a morena saiu da sala, chamei David.
— Tua vida tá em risco — avisei.
— Mas eu juro que nunca escrevi nada pensando nela!
— Sei, sei, David. Mas agora, quando ela passar na tua frente, tu baixa os olhos.
Algum tempo depois, a colega pediu demissão. Anos mais tarde, me enviou uma carta de próprio punho, que, em síntese, dizia.
— Sou aquela que reclamou do David. Me mudei com meu marido para o Rio de Janeiro e me converti. Agora, estou separada e meu pastor me orientou a consertar meu passado. Então, quero dizer que aquela história do David era uma invenção para causar ciúme no meu marido e tentar salvar o casamento. Sinto muito.
Chamei o David, relatei a surpreendente retratação tanto tempo depois e pedi desculpas por desconfiar dele – se bem que, dado seu histórico amoroso, razões não faltavam! Rimos muito e refletimos sobre a vida, o ser humano, o jornalismo, o Brasil e o mundo, como sempre fazíamos, seja bebericando cafés, chopes cremosos ou IPAs e APAs.
Bastaria a extensa luta de David contra o câncer, e as pessoas que inspirou neste enfrentamento, para ele entrar na história. O cemitério, eu sei, está cheio de gente insubstituível, mas David ingressou em outra liga. Não faz parte desta legião. Por tudo, ele terá para sempre um lugar único no jornalismo, na literatura, na vida de Porto Alegre e, sobretudo, no coração de sua família e de seus amigos.
Com justiça, David Coimbra foi e continuará sendo um dos grandes.