É uma trágica ironia história. Durante e após a Grande Guerra Patriótica, como a Segunda Guerra é chamada na Rússia, a União Soviética outorgou a 12 centros urbanos o título de cidades-herói por terem resistido bravamente aos invasores nazistas. Duas delas, Kerch e Sebastopol, estão na Criméia tomada da Ucrânia por Vladimir Putin em 2014. Outras duas, Kiev e Odessa, são metrópoles ucranianas transformadas agora em palco do teatro de horrores desencadeado por Moscou.
Para aprofundar a ironia, Putin passou a aplicar à Ucrânia táticas que remontam à invasão nazista. Bombardeadas seguidamente, e com as tropas russas fechando o perímetro em torno delas, Kiev e Kharkhiv relembram Leningrado, hoje São Petersburgo, que resistiu por inacreditáveis 900 dias ao cerco dos alemães. Ainda há comida nas cidades, mas as prateleiras estão cada vez mais vazias e a vida, como em Leningrado, se transfere paulatinamente para os porões e abrigos subterrâneos.
Nada se compara em devastação a Mariupol, uma cidade que chegou a ter meio milhão de habitantes, e que vem sendo dizimada pelas bombas russas. Pelas cenas de destruição e com a rotina começando a se esgueirar entre ruínas, Mariupol guarda semelhanças com Stalingrado, hoje Volgogrado, cenário do maior capítulo de resistência russa e um ponto de inflexão da Segunda Guerra após a rendição de quase 100 mil alemães.
Essa memória heroica da URSS sob ataque assombra hoje Moscou, cuja expectativa de uma vitória rápida, com os russos sendo recebidos como libertadores, evaporou-se nos já primeiros dias de batalha. Diante da tenacidade ucraniana, a invasão fez ressurgir outro fantasma. Desde a Segunda Guerra, nenhuma grande cidade foi tomada por invasores sem que tenha havido uma rendição, como Bagdá em 2004, ou sua virtual destruição, como Alepo, na Síria, onde de 2012 a 2016 bombas russas abriram terreno para que forças iranianas e sírias convertessem a cidade em uma pilha de ruínas e legassem em mais de 100 mil mortes. Outras cidades atacadas intensamente, como Sarajevo nos anos 90, viveram o inferno na Guerra da Iugoslávia mas não foram ocupadas, até porque a doutrina da guerra urbana – disputar casa a casa – pouco mudou desde Stalingrado.
Sem um acordo de paz, resta a Putin aferrar-se a seu método mais truculento de demonstração de força, já testado na Síria, na Geórgia e na Chechênia: submeter as populações civis a um bombardeio cruel e incessante até que, pela exaustão, as tropas se rendam ou os invasores tomem enfim as ruínas. Com suas paranoias e métodos sangrentos que rescendem ao nazismo, Putin macula a memória dos que lutaram e venceram a Grande Guerra Patriótica e abre um fosso que dificilmente se fechará entre dois povos que tinham até poucos anos uma convivência amistosa.