Pela vontade de quem advoga o bom senso e a liturgia do comedimento no cargo mais poderoso da Terra, Donald Trump deveria sofrer uma derrota acachapante na próxima terça-feira. Soterrados sob sete palmos de votos, Trump e seus seguidores se recolheriam à humilhação imposta pela maioria dos eleitores e virariam um emoji de horror, com exclamação, no rodapé da história americana e mundial.
Essa pode ser a vontade, mas desejo não tem nada a ver com a realidade. Ainda que Trump sofresse um fiasco, o que não deve ocorrer, os gatilhos psicológicos que desencadearam há quatro anos a mais assombrosa eleição dos EUA seguirão prontos a disparar. Com Joe Biden instalado na Casa Branca, o eleitorado de Trump não vai esvanecer – ao contrário, livre das amarras e contradições do líder, esse eleitor ficará mais à vontade para expor sua peculiar visão de mundo. O que fazer com quase metade dos EUA enfurecida é o maior desafio de quem não pretende governar em clima de guerra civil – uma tarefa para a qual outros países fraturados, Brasil entre eles, deveriam dedicar atenção máxima.
Vistos de longe, os 43% que gritam Make America Great Again parecem um amontado de racistas, crentes fanáticos e caipiras ignorantes. Como sempre, porém, visões estereotipadas obscurecem a verdadeira natureza de um fenômeno. Para suturar uma sociedade partida é preciso entender primeiro as razões do fervor a um candidato, excêntrico ou não. Em geral, a economia – “Minha vida será melhor ou pior com A ou B”– ganha o topo de prioridades, mas no caso dos EUA duas outras motivações dividem o pódio: o medo e o ressentimento.
Como o primeiro instinto de um ser humano é o de sobrevivência, o medo passou a governar as campanhas e o mandato de Trump. Seu twitter troveja o medo de que multidões de latinos em andrajos irrompam pela fronteira, de que a China roube os empregos, de que o islamismo radical converta os filhos em terroristas e de que se venha a ser esquartejado moralmente por uma fala ou piada fora de lugar.
A esses medos, soma-se o ressentimento, que se alimenta da sensação de que “os outros” se divertem na festa enquanto “nós” bancamos o convescote e ainda servimos os canapés. Os trumpistas são cevados diariamente nesse rancor ao establishment, representado pela mídia, por Wall Street, pelos políticos de carreira, pelos intelectuais e, principalmente, por aqueles que reduzem os eleitores de Trump a um bando de racistas, fanáticos e ignorantes. Enquanto não se tratar de compreender o fenômeno e, em vez de desprezá-lo ou humilhá-lo, se mergulhar nas origens do descontentamento e resolvê-lo, os Trumps que estão por aí continuarão a ser eleitos e a forjar exércitos de seguidores amedrontados e ressentidos planeta afora.